Uma Teoria da Arte

Hoje: 23-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

O filósofo Locke, no século XVI, já sabia que os objetos nos enviam sinais físicos ordenados de tal forma que o nosso cérebro pode identificá-los e gerar as ideias em nossa mente. Porém tudo indica que ele desconhecia que, no processo do conhecimento o mesmo se dá com o sentimento. Como sabe hoje o leitor que lê revistas e assiste a informativos da TV, o nosso cérebro gera a química responsável por nossos sentimentos em todas as sua variações. Em outras palavras, as coisas nos enviam os sinais (acústicos, óticos, visuais, odoríferos, tácteis) com os quais nós as identificamos (formulamos conceitos), e que também provocam no cérebro a alteração fisiológica geradora dos sentimentos que lhes correspondem – são belas e prazerosas, ou feias e insuportáveis. Entre esses sentimentos estão o prazer e a emoção do êxtase.

Para compreender a Arte, a apreciação do belo, o papel do artista, e o próprio teatro, precisamos examinar o que são esses sinais que o mundo externo nos envia e que permitem a conceituação das coisas e o despertar de nossos sentimentos.*

Locke ensaiou a tese de que seriam corpúsculos, e de suas ideias desenvolveu-se a teoria corpuscular da luz. Mas a ação é menos direta e muito mais sutil, quando se trata do sentimento. Alguns outros filósofos no século XIX postularam a existência de conceitos não conscientes, vinculados a ideias conscientes. Estas vinculações explicam comportamentos do indivíduo incompreensíveis quando examinados apenas em relação às ideias de que ele está consciente. No campo da Arte Publicitária é a chamada “influência subliminar”, causada por uma variedade de sinais dos quais o indivíduo não tem consciência, mas que são reais e despertam nele sentimentos que dirigem seu comportamento no sentido desejado pelo publicitário sem que ele se dê conta dessa manipulação.

A psicologia da arte sempre esteve consciente da existência de vetores físicos de ação subconsciente no processo da criação artística. Por exemplo, em um quadro, quanto maior a representação de profundidade em relação ao plano frontal, maior o sentimento de curiosidade e de interesse pela intimidade despertado no espectador. Linhas angulosas, linhas verticais, linhas horizontais e linhas sinuosas, e também a posição dos objetos e suas cores, as frequências e as proporções, têm influência micro-fisiológica na mente do observador, geralmente sem que ele se aperceba disto. Recentemente se cogitou nos meios científicos que a simetria dos traços fisionômicos é responsável pela beleza facial, e que também a constante de Fibonacci deve ter alguma influência estética importante.

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Embora esteja consagrada na Psicologia a teoria do Estímulo-Resposta (S-R) de Skinner, será fácil para o leitor verificar que os sinais que as coisas nos mandam não são estímulos. Eles não têm a capacidade de excitar, mas sim a capacidade de aplacar uma excitação, às vezes indefinida, às vezes muito específica. O que possivelmente fazem é alterar o fluxo energético (calorias? micro-cargas elétricas?) entre as configurações associativas no circuito neurológico. Com isto, criam-se “compensações” equilibradoras dessa energia, como já teorizava Freud, buscando explicar alguns postulados da Psicanálise. Parece então que a mente necessita a todo instante de objetos de conhecimento cujos sinais provoquem uma redistribuição de seus elementos de potência, para aplacar uma excitação deflagrada por um significado.

Uma alteração fisiológica, inclusive a artificialmente provocada, faz o pensamento criar idealmente um objeto ou uma ação compensadores, questão que é abordada em minha página A ilusão das fórmulas comportamentais. Quando a pessoa simplesmente decide ir ao teatro, algo nela requer que busque esse entretenimento. Diante de cada coisa a pessoa desenvolve um sentimento de interesse, de indiferença ou de repulsa.

O processo é bastante claro com a música, por exemplo. Os sinais musicais (melodia, ritmo, etc.) levam a pessoa a diferentes atitudes e valorizações. Eles modificam as condições fisiológicas por meio do impacto das ondas sonoras e neste sentido trabalham como uma droga estimulante ou paralisante. É sabido que as melodias com muitos bemóis são tristes, e as que têm muitos sustenidos são alegres. A música “romântica”, as marchas militares, os hinos cívicos e religiosos, criam fisiologias geradoras de sentimentos específicos, independentemente da presença de valores concretos correspondentes. Ao afetar estruturas e mudar a fisiologia na mente, a música faz o indivíduo procurar objetos de afeição, torna o sujeito “romântico”, ou dá-lhe brios, o silencia em atitude de respeito, etc.

Os efeitos estéticos relacionados às linhas, às proporções, a métrica na poesia, o modo como a música ganha melodia e o fato mesmo de estar estruturada em semitons, estão a nos dar pistas a respeito das estruturas genéticas receptivas das matrizes associativas, que devem ter certas constantes físicas a serem procuradas. Seria importantíssimo para as artes identificá-las e precisá-las cientificamente.

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Como expressão abstrata, Tema é a proposição que direciona e empresta unidade ideológica ou estética a uma forma de expressão. O teatro, por exemplo, é a obra de arte complexa que busca mostrar o belo na convergência de várias formas de expressão artística reunidas por um tema (O cinema acrescenta a essa complexidade mais outra forma: a fotografia). Em cada caso, o espetáculo somente ganha sentido se tiver um tema. À luz da neurofisiologia, o tema – ao estruturar o espetáculo no sentido de um conceito ou significado inteligível –, ele reflete como a estrutura associativa da mente pode ser satisfeita em sua carência de equilíbrio. Ele conduz o espectador a encontrar, pela reflexão, O tema é a proposta ao espectador de um significado que lhe vai dar o sentimento de que precisa para o estado de satisfação e bem estar em relação a uma ideia desequilibradora em sua mente. Ou pode mesmo lhe oferecer, em lugar da proposta à reflexão, uma solução já pronta para esse desequilíbrio.

O leitor sabe muito bem que uma experiência desagradável sofrida por um indivíduo com respeito a uma dada circunstância ou objeto, influirá nos seus sentimentos futuros. Isto mostra que aquela experiência deixou arquivada uma configuração associativa que permite a esse indivíduo reconhecer o objeto e voltar a sentir a respeito dele o mesmo sentimento que teve em outro momento.

Os sentimentos variam em função da experiência anterior e da carência presente. Como nem a experiência tornada subconsciente nem a condição fisiológica do momento podem ser predeterminadas, o que agrada a uns pode não agradar a outros; o que parece belo para uns pode parecer feio para outros, e então nenhum objeto pode ser belo por si mesmo. Duas pessoas identificam (conceito) um carro de cor amarela, mas uma delas gosta (sentimento) do modelo do carro ou da cor amarela, e a outra não.

No entanto, uma certa unanimidade no juízo estético não fica afastada. O cérebro tem áreas em que um aprendizado evolutivo criou padrões comuns a todo ser humano. Existem, assim, padrões de receptividade e reação fisiológica no cérebro que são basicamente comuns a todas as pessoas. Resulta disto uma aparente universalidade de valores nos aspectos gerais do que seja o belo e o feio, nos objetos de desejo, nas expressões e impressões artísticas em geral, que respondem pela universalidade de certos parâmetros nos sentimentos estéticos. O universal, no juízo estético, decorre tão somente da generalidade das matrizes emocionais orgânicas próprias do homem, de sua quase total universalidade genética. Mas, ainda assim, se pode afirmar que os sinais são, em geral, universais na conceituação (iluminam o mesmo significado para todos na identificação e nomeação das coisas), mas são sempre particulares quanto aos sentimentos que ensejam, universais quando objeto de conceituações e particulares ao conduzirem para o objeto um sentimento particular e pessoal

Podemos então dizer que a Arte é a disciplina que se ocupa do fenômeno envolvido no conhecimento em relação ao sentimento do belo, e das regras e relações às quais este fenômeno está subordinado.

A arte do artista consiste em criar e explorar objetos ricos em infra-sinalisadores estéticos e o artista, portanto, é aquele que se propõe, através de tentativas de manipulação de materiais, a gerar tanto em si mesmo, o criador, quanto no outro, o espectador, sentimentos de prazer e de excelência na apreciação de sua obra, independentemente de qualquer fim prático que a obra possa ter.

O objeto de arte é aquele cujos sinais encontram na pessoa tanto a condição biológica como a experiência indispensável a uma construção mental interna geradora do sentimento de prazer na sua contemplação. A emoção e o sentimento de excelência despertados em função dele é o sentimento estético do belo.

Rubem Queiroz Cobra

(*) Essa matéria está mais amplamente desenvolvida nos meus livros Emotional Man and his thematic behavior (1985) e Filosofia do Espírito (1997). Parte dela está reproduzida em minha página Ilusão de uma fórmula comportamental, neste Site.

Página lançada em 12-08-2006.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Uma Teoria da Arte. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2006.