Socialismo e Religião

Hoje: 28-03-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Socialismo e Liberalismo. Os dois pólos extremos, o socialismo e o seu oposto, o liberalismo, representam, no entendimento comum das pessoas, uma posição em que a iniciativa individual é limitada (socialismo) e outra posição em que a iniciativa individual é o fundamento do progresso social (liberalismo). No socialismo o governante recebeu da sociedade toda a responsabilidade pela sobrevivência e desenvolvimento social, e todos os indivíduos devem disponibilizar os seus bens e participar da montagem de um programa de governo que todos estarão obrigados, mediante força, a respeitar e cumprir depois de aprovado: a iniciativa individual não vai alem das propostas programáticas. No liberalismo predomina amplamente a iniciativa individual; ao governante cabe fundamentalmente apenas organizar a justiça e a defesa, inclusive velar pelo direito de propriedade de cada membro da sociedade.

Essa concepção popular espelha bem o que é essencial nas duas doutrinas filosóficas, e nos permite distinguir duas fórmulas de organização político religiosa a elas correspondentes: uma a fórmula totalitária do Estado religioso, como nas monarquias medievais e hoje, em alguns estados islâmicos; e outra, a fórmula do Estado liberal que declara uma crença em Deus, como em algumas democracias ocidentais. As alternativas seriam o Estado religioso, no qual o governo estará incumbido de utilizar a força para aplicação dos preceitos da religião, cabendo aos cidadãos a obediência incondicional, ou o Estado liberal com uma vocação ou ética religiosa simplesmente professada pela maioria dos seus cidadãos, e no qual a iniciativa individual prevalecerá.

Fundamento social cristão. Os partidos e os movimentos cristãos teriam, portanto, esses dois possíveis caminhos para o objetivo de organizar política e economicamente o Estado: um governo totalitário, com uma religião oficial, ou um Estado liberal com o rearmamento moral dos indivíduos segundo os preceitos do cristianismo, dentro de uma sociedade livre e democrática. Esses partidos, ou movimentos, existem, e se não estão claramente definidos como tais, revelam-se nas posições confrontantes, principalmente nos debates sobre a chamada “Teologia da libertação”. O primeiro, que seria o chamado Socialismo Cristão, seria a moral cristã imposta por lei. Como o rearmamento moral é trabalhoso e cada vez mais difícil e depende da fé, podemos compreender a inclinação cristã pelo socialismo como solução para os males sociais, não importa o que aconteça com a fé. O segundo, que seria o Movimento Social Cristão o qual, ao contrário do socialismo, baseia-se na ação individual voluntária e cooperativa para alcançar o bem comum segundo os preceitos da fé cristã.

Socialismo Cristão. Esta corrente teve em Campanella sua primeira manifestação conhecida. Note-se que, embora as monarquias fossem cristãs, os preceitos religiosos que interessavam eram apenas os da obediência ao Estado e ao monarca, como representantes da ordem e do poder de Deus, e que a estrita obediência aos dogmas era questão de segurança do Estado. No século XVII o dominicano Thomaso Campanella propôs uma ordem social cristã da qual seria força guardiã e coerciva o poder da monarquia católica da Espanha. Repetiu sua proposta nomeando, em versões posteriores da sua obra, o poderio militar francês e depois a união das forças das monarquias católicas sob a chefia do Papa. A idéia no cerne da sua utopia era a da justiça social.

No começo do século 19, o filósofo francês Henri de Saint-Simon propôs ” um cristianismo novo ” preocupado primeiramente com as reivindicações dos pobres. Os saint-simonianos acreditavam que a chave do desenvolvimento social seria um espírito da associação, – com a Igreja instituída em Estado como a força dominante -, o qual suplantaria gradualmente o espírito de egoísmo e antagonismo prevalecente na sociedade. Advogavam (entre outras coisas) que o direito de herança fosse abolido de modo que o capital pudesse sair das mãos dos capitalistas ávidos e ser colocado à disposição de todos. Saint-Simon propôs uma ditadura benevolente dos industriais e dos cientistas para eliminar as iniquidades do sistema liberal inteiramente livre. Desejava um Estado industrializado dirigido pela ciência moderna, no qual a sociedade seria organizada para o trabalho produtivo pelos homens mais capazes. Os saint-simonianos imaginaram que isto e outras ações relacionadas terminariam efetivamente com a exploração dos pobres.

Falta aos adeptos do Socialismo Cristão, no entanto, uma fórmula de conciliação entre os alvos fundamentais do socialismo, ou seja, a ampla setorização da autoridade e da ação do governo – com a consequente restrição da iniciativa individual -, e as convicções religiosas e éticas do cristianismo as quais, ao contrário, demandam a livre escolha individual do bem. Essa contradição cria a dúvida quanto à legitimidade da expressão “Socialismo Cristão”, uma vez que, se a Ética Política do movimento respeita o livre arbítrio, então é liberalismo cristão, e se introduz a coerção, é puro socialismo que nega o princípio da liberdade individual que é fundamental ao cristianismo.

O termo socialismo cristão foi apropriado primeiramente ao redor de 1830 por um grupo de teólogos britânicos incluindo Frederick Denison Maurice, o novelista Charles Kingsley, e outros, que fundaram um movimento que ganhou forma na Inglaterra imediatamente depois do fracasso da agitação Cartista de 1848. A finalidade geral desse movimento era reivindicar para “o reino de Cristo” sua autoridade verdadeira sobre os “domínios da indústria e do comércio”, e “para o socialismo seu caráter verdadeiro como a grande revolução cristã do século 19.” Quatro anos depois que Karl Marx caracterizara a religião como “ópio do povo”, Kingsley (possivelmente desconhecendo a frase de Marx) afirmou que a Bíblia havia sido erradamente usada como “uma dose de ópio para manter bestas de carga pacientes enquanto estavam sendo sobrecarregadas” e como um “mero livro para manter o pobre dentro da ordem” (em Politics for the People, 1848).

Tudo isto faz parecer que os fundadores do Socialismo Cristão nessa época pretendiam, de modo confuso, o uso da força e o banimento da religião. Porém verifica-se, examinando a atitude individual de seus fundadores, que pretendiam o soerguimento da classe pobre, e não uma revolução ou um estado forte que a socorresse em oposição aos ricos. Ao que pretendiam aplicar-se-ia melhor a expressão Movimento Social Cristão, que hoje deseja um governo segundo os preceitos cristãos porém apenas naquele mínimo de responsabilidade que possa ser conferido ao governo na democracia liberal.

Movimento Social Cristão. Maurice e Kingsley, embora fossem radicalmente por uma reforma social que diminuísse a pobreza, pensavam que existia um caminho através da fé, e procuravam converter os ricos, e paralelamente convence-los de que essa reforma reverteria em benefício de todos, enquanto promoviam as classes pobres através do melhoramento da instrução e da habilitação profissional.

Outro exemplo de movimento social cristão atual em franco contraste com o socialismo marxista é o movimento criado por Chiara Lubich, destinado a contribuir para uma nova ordem mundial segundo os preceitos cristãos de fraternidade e bens em comum. Uma líder católica-ecumênica e filósofa cristã, em 1960 ela deu uma dimensão político-filosófica e religiosa, ampla e original, à sua proposta, pregando que Deus pede o amor recíproco entre Estados, assim como pede o amor recíproco entre os irmãos, e que era chegado o momento no qual a pátria alheia devia ser amada como a própria.

O forte tom ecumênico do movimento, indispensável à sua ética política de união dos povos, foi uma antecipação ao movimento ecumênico que seria deflagrado na Igreja Católica pelo papa João XXIII. Criou mais tarde o que chamou Economia de Comunhão na Liberdade um setor do Movimento destinado a criar uma rede de indústrias e agentes comerciais preocupados com a união e o compartilhamento, o respeito às leis, salários justos, e mútuo apoio, com capital e tecnologia partilhadas também entre as nações e os continentes.

 

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 2001.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Socialismo e Religião. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2001.