A Filosofia do Querer

Hoje: 29-03-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

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Paixão. A paixão é o fenômeno com características de obsessão marcado pelo apego incontrolável a objetos, ideias ou pessoas. Tratando-se de pessoas, que é o caso que aqui nos interessa, ela é uma emoção ímpar cujo sinal mais característico é a compulsão à amplectação ou abraço de posse do seu objeto.

A paixão não é a priori sexualmente orientada, mas tende a seguir a orientação sexual do indivíduo quando esta orientação pode ser seguida, e a ser homossexual no convívio obrigatório entre pessoas do mesmo sexo. O seu objetivo primário é o enlevo de excelência, o “estar bem” que resulta de poder dedicar-se generosamente e com exclusividade ao objeto amado, numa relação de intimidade e mútua fidelidade. Suas raízes estão, portanto, naquele nível da carência mais profunda pelo ser bem, e encaminha-se para o sexual e o genital devido à ânsia por uma sempre maior intimidade.

Se diz comumente que a paixão é cega porque o apaixonado não tem consciência de que, por uma necessidade interna, faz uma objetivação estética e inclusive moral sobre a pessoa amada. Dela ele recebe inconscientemente apenas os sinais que atraem sua objetivação. Como esses sinais (infra-estímulos) são elementos meramente físicos (linhas, proporções, modos, etc.) de que ambos não têm consciência, eles não representam valor. Sem a objetivação, essas linhas e vetores ficam vazios, destituídos de atratividade e a pessoa olha para alguém que já considerou bela, e que nada mudou, sem ver mais nenhuma beleza.. O objeto da paixão é, em sentido estrito, apenas um viabilizador.

Na paixão estão envolvidos componentes somáticos importantes para o prazer, que não são genitais. O toque produz uma sensação que prende os amantes e lhes dá o desejo de eternizar o contacto. Um impulso provem das alterações nos músculos do peito e dos braços, para abraçar (amplectação), no homem, e para encolher-se, e se deixar tocar e abraçar em aconchego (contrectação), na mulher. A dor no peito devido à contração muscular de um amplexo não realizado levou os filósofos a pensar que os sentimentos tinham origem no coração. A estes componentes se juntam outros de caráter genital, se a fisiologia própria está ativa, e na medida que os amantes desejam aprofundar sua intimidade.

Companheirismo. A busca de intimidade com o outro pode, reconhecidamente, ser independente de vinculação genital e gerar um companheirismo com uma característica emocional não sexual. Uma pessoa que busca o abraço reconfortante e encorajador de outra, que ela valoriza, o faz por esse valor não sexual, porém extremamente gratificante, que a intimidade com o outro pode ter para o seu estar bem. Alguém pode ser amado simplesmente por oferecer permanentemente esse conforto e encorajamento, e constituir-se em companheiro ou companheira sem que o ato sexual esteja incluído ou cogitado na relação, principalmente no companheirismo de mesmo sexo.

Celibato religioso. O Celibato, tal como definido no dicionário Aurélio, é “O estado de uma pessoa que se mantém solteira”. É óbvio que a pessoa “manter-se solteira” significa exclusão do companheirismo. No celibato religioso fica excluída também a atividade sexual de solteiro, porque para o religioso tal atividade exige o sacramento do matrimônio.

Se não for uma adoção por inclinação pessoal natural, a abstenção do sexo e a exclusão do companheirismo do celibato requerem que o indivíduo conheça os fundamentos da sexualidade e da dependência afetiva entre as pessoas, a fim de trabalhar com êxito as forças que são contrárias ao seu objetivo.

Amizade particular. Em um seminário para padres, ou em um convento, os indivíduos são, – de acordo com os autores adiante citados –, estimulados a desenvolver amizade “sadia” entre si, e creio que poderiam fazê-lo, se estivessem bem informados do processo afetivo e de como limitar seus impulsos. O padre Alejandro Roldán (1965) comenta: “A possibilidade teórica de amizades espirituais e santificantes na vida religiosa é uma possibilidade que todos admitem, mas alguns crêem que a realização prática de tais amizades, na vida normal das comunidades, não é desejável, nem sequer possível, sem inconvenientes sérios” (op. cit., p. 47).

De fato, como poucos estarão preparados para isso, essa amizade que é estimulada se transforma em um tipo de apego emocional que entre os religiosos é chamada “amizade particular”, a qual tem por base a paixão entre indivíduos do mesmo sexo e pode incorporar reações sexuais ao se dar após a adolescência.

Diz Roldán (op. cit., p.52): “O consulente nos apresenta, como sintomas, o fato de ele lembrar-se da pessoa, ainda ausente, e de pensar nela com frequência; isto significa que o processo de idealização está em pleno desenvolvimento”. Aponta também o afastamento de todas as outras pessoas que possam perturbar essas relações intimas, e a violenta reação se um terceiro intervém, pretendendo interferir nelas (op. cit., p.27-28). “Quando dois amigos conversam entre si, nunca um terceiro atrapalha, incorporando-se ao grupo (a não ser que haja uma razão especial, como estarem tratando de um assunto particular, urgente etc.); ao contrário, quando existe amizade particular, o adventício vem romper a intimidade e é repelido sem compaixão, nem formas urbanas.”

Roldán sugere alguns modos de combater a “amizade particular”, entre eles um que nos parece absolutamente ineficaz “os remédios aqui devem dirigir-se a que o indivíduo não pense, e, como um nó puxa outro, será recomendável que o indivíduo se entregue ao trabalho, com mais intensidade e, conforme o caso, que comece um novo curso para absorver seu pensamento e imaginação” (op. cit., p.52). Sugere também o que seria um método de depreciação, e que igualmente penso que teria pouco resultado: Ele propõe ao interessado que olhe deliberadamente os defeitos do outro, ponderando-os detidamente e “procurando reter o processo de idealização a que se entregou e, mais ainda, aconselha-se iniciar outro processo, em sentido contrário” (op. cit., p.53).

O autor citado obviamente exclui do celibato o companheirismo, quando diz que o jovem sacerdote ou religioso deve “aprender a isolar-se progressivamente e a viver alegre na solidão. Ora, quem vibra com os grandes ideais do cristianismo e sente a grandeza da paternidade espiritual saberá viver relativamente sozinho, como um homem maduro” (op. cit., p. 56).

Roldán faz também grande recomendação da acese, o que coincide com o que chamo método do contraponto associativo do qual falarei abaixo. Afirma que o “perigo das amizades particulares é superado pela maioria dos meninos, espontaneamente, com a prática de esportes e com o estimulo do estudo, que se fomenta nos colégios” (op. cit., p. 30).

Ao finalizar o tratamento da questão do celibato Roldán faz um comentário algo melancólico: “a consideração das vantagens que o amor traz ao homem, faz pensar se a renúncia ao mesmo não implica, ao menos, uma séria mutilação no coração do religioso e sacerdote” (op. cit., p. 64). E comenta mais: “Pode-se, entretanto, insistir afirmando que, ainda que não se trate de uma anormalidade, o religioso e sacerdote, privados da satisfação de um instinto primário como é o do amor, ficam mutilados e como irrealizados na ordem humana. Deve-se reconhecer que o vazio que o amor humano deixa no coração do religioso e do sacerdote é grande”… “Realmente, no caso do religioso, a renúncia é tríplice: fisiológica a respeito do impulso instintivo; renúncia afetiva com referencia ao amor ou ao complemento afetivo, e renúncia à paternidade e maternidade corporais” (op. cit., p. 66).

Com essas palavras, Roldán passa a impressão de que, de um modo geral, a escolha do celibato que fazem os religiosos é uma escolha mal assistida e um ingresso mal preparado, que deixam lugar a uma ambivalência entre dois projetos opostos, porque ele não se queixa da dificuldade em manter o celibato, mas sim do celibato que ele próprio escolheu. A compreensão fundamental deve ser a de que a decisão pelo sacerdócio, face às condições impostas pela Igreja, deve passar primeiro por uma vasta e profunda preparação para o celibato, com sua exclusão de sexualidade, família e companheirismo. Ingressar primeiro na vida religiosa para depois enfrentar o celibato pode não ser uma boa ideia.

Os seminários menores com certeza estão acolhendo meninos que não conhecem ainda aspectos de sua personalidade que serão futuramente mais ou menos fortes. “Não recomendo a nenhum adolescente que entre no seminário, porque é uma estrutura ruim para crianças, que me pareceu, na época, totalmente imposta e até cruel, porque sufoca energias naturais do menino” – são palavras do bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador, Dom Thomas William Murphy, ditadas em uma entrevista transcrita em Mululo (1997, p. 97).

Celibato feminino. Embora tenha sido sempre muito conhecido o problema das chamadas “amizades particulares” nos seminários e internatos masculinos, o mesmo não acontecia em relação aos conventos de freiras e noviças. Embora a literatura medieval e moderna tenha sido rica de referências à licenciosidade em conventos de freiras principalmente em Portugal, França e Itália, o romance exclusivamente entre freiras não fazia parte dela. Isto possivelmente pelo fato de que os homens escreveram mais a respeito de suas próprias vidas que as mulheres.

Roldán (op. cit., p. 30) lembra que Santa Teresa fez clara alusão ao problema. De fato, esta freira, que viveu de 1515 a 1582 na Espanha, ao fundar o Convento de São José, em Ávila, exortou as irmãs que habitariam a nova casa: “amar-vos muito umas as outras, é de suma importância, porque entre os que se amam não há coisa difícil de suportar que não se releve com facilidade”. Porém, a Santa lamenta: “Se no mundo este mandamento fosse cumprido como deveria ser, muito contribuiria para se observarem os demais. Acontece, porem, que, por excesso ou por falta, nunca chegamos a guardá-lo perfeitamente”. Este excesso a que alude podemos interpretar como “amizade particular”, pois ela acrescenta: “acarreta tantos males e imperfeições, que só o crerá quem o tiver testemunhado pessoalmente”.

No julgamento da Santa, é esse tipo de amizade mais comum entre as mulheres: “Nas mulheres, creio, será isto ainda mais comum do que nos homens, e causa danos muito notórios à comunidade. Daqui vem o não se amarem tanto umas as outras em geral, o sentir o agravo feito à amiga, o desejar ter com que presenteá-la, o buscar tempo para conversar com ela, muitas vezes mais para dizer-lhes coisas descabidas e quanto lhe quer bem, que para falar no amor de Deus. (S. Teresa, ed. 1979, p. 36-37)

Curb e Manahan (1986) editaram o que é com certeza o primeiro documento objetivo e abrangente, sobre a amizade particular nos conventos de freiras. Os diferentes depoimentos contidos no livro ventilam os problemas que cercam uma relação dessa natureza, porém as autoras, elas próprias ativistas do movimento homossexual feminino, não escondem que privilegiam os casos que evoluíram de amizade particular para lesbianismo.

Em um dos depoimentos em Curb e Manahan, a depoente diz que, por serem encorajadas a formar amizades de base espiritual, as amigas buscavam introduzir um sentido de transcendência no relacionamento que pudesse tranquilizá-las: “Ao mesmo tempo que estávamos recebendo lições contra amizade particular, no entanto, nós éramos encorajadas a formar amizades espirituais. Assim, nós sempre podíamos racionalizar que a amizade particular era na verdade espiritual, porque estava investida com mais que sentimentos eróticos. Também, estava presente uma terceira parte – Deus.”… “De fato introduzimos um sentido de transcendência no relacionamento. Havia alguma coisa santa, alguma coisa sagrada a seu respeito. Eu estava sempre desejando empurrar uma amizade particular para o domínio espiritual de modo que não fosse errada e de modo que eu não seria dominada pela paixão” (op. cit., pp. 311-312).

Curb e Manahan chamam atenção para o fato de que os homens ligam pouco para a amizade particular entre freiras. Homens orientadores espirituais fazem pouco caso do problema quando se trata de freiras. (op. cit. p. xxiv). Tendem a considerar a ligação prejudicial, não como violação do voto mas apenas como algo que pode desviar da total dedicação a Deus e à comunidade. (op. cit. p. xxvi). No entanto o drama é tão profundo que “Alguns casos conduzem a internação em clínicas psiquiátricas, terapia com drogas e eletrochoque, que eventualmente leva ao suicídio.”

É possivelmente a dificuldade em entender o problema estrutural, funcional e emocional da paixão que leva os orientadores à tolerância, ao ponto de admitirem alguns casos flagrantes de lesbianismo. Quando cresce para duas religiosas o desejo de uma casa particular, em que pudessem ter liberdade para dar expansão aos aspectos físicos do amor, considerando que desejam manter os votos de obediência e do trabalho de caridade, essa tolerância permite que evitem enfrentar o mundo onde ambas seriam condenadas como pessoas anormais, e que permaneçam na Instituição. Facilita também a solução como companheirismo. Então algumas podem decidir manter uma união afetuosa, limitada, que viola o celibato sem violar o voto de castidade propriamente. Um trecho de um depoimento em Curb e Manahan (op. cit., p. 119), enaltece a renúncia à amizade de fundamento sexual entre duas religiosas, em favor do companheirismo, pelo fato de que, aceitando ambas o voto de castidade, esse acordo entre elas irá uni-las com laços tão fortes quanto a vida sexual que tivessem em comum.

A maioria dos ex-seminaristas, ex-padres ou ex-freiras que tiveram casos de amizade particular e que deixaram o seminário ou convento, – diz Roldán a certa altura -, uma vez no meio heterossexual vivem normalmente: casam-se e permanecem casados e olham para as relações tidas enquanto no regime de internato como acidentais na adolescência e pelas quais tinham que passar.

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Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 04-02-2002.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Filosofia do querer. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2002.