O Pastor Evangélico e os Kabilos do Mal

Hoje: 20-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

«12 3

Mas os kabilos venceram e o ritual se repetia nas noites de lua cheia, como antes. “As derrotas podem nos ensinar alguma coisa!”, pensou o Pastor.

Ao fim de algumas semanas de tratamento e de entregar-se às tarefas de ajuda conforme se havia proposto, o pastor começou a perceber que o trabalho no hospital poderia ser reduzido à metade, se os funcionários cuidassem melhor de suas tarefas. Os dois enfermeiros que levavam as tigelas de sopa do jantar eram dos menos preocupados. Como fios de pano desprendidos do esfregão de limpar o chão agarravam-se aos eixos das rodas, os carros empurrados por eles iam para a frente aos trancos, sacudiam os pratos, e a sopa era derramada pelos corredores.

O pastor viu também a reclamação irada de uma enfermeira contra o almoxarife que não reabastecia os armários de medicamentos simplesmente por preguiça, segundo ela.

O pastor entendeu que poderia mudar a situação, se falasse alguma coisa sobre a santificação do trabalho, em suas pregações.

—Podemos fazer do nosso trabalho uma homenagem a Deus, e isto significa santificá-lo, transformá-lo em oração, disse ele no sermão, à tarde. Que o trabalho pode ser uma forma de oração foi ideia de um teólogo espanhol, doutor José Maria Escrivá. Mas, me parece que, se não for realizado com o melhor empenho da pessoa para que seja perfeito, o trabalho não alcançará mérito aos olhos do Senhor. Então o pastor perguntou, erguendo a bíblia para o alto:

– O que está escrito em Matheus, capítulo 5, versículo 48?

Ouviu-se o farfalhar de páginas enquanto os fiéis, apressadamente, procuravam o texto citado. Uma senhora adiantou-se:

— Em Matheus 5:48 está dito: “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”.

Algumas outras vozes sussurraram a confirmação.

—De repente compreendi que o Senhor falava do presente na vida de cada pessoa, e não de um alvo a conquistar no futuro. Devemos dar-nos pressa! Não há tempo para consultar filósofos sobre o que é “perfeição”. O Senhor simplesmente nos manda praticá-la, porque nos deu como distinguir o que é perfeito daquilo que não é. Então, tudo que fazemos para o bem, e não apenas o trabalho, pode ser levado à perfeição e, deste modo, tornar-se uma oração. É maravilhoso que as coisas mais simples, se feitas com perfeição, como simplesmente estacionar o seu carro corretamente dentro dos limites de uma vaga em um estacionamento, lavar a louça da refeição, ou arrumar o guarda-roupa com limpeza e ordem, possam ser atos de louvor ao Senhor! Aleluia!

*

Para surpresa geral, a palavra do pastor foi comentada no jornal da cidade sob o título jocoso: “Pastor “pinéu” fala de trabalho e perfeição em sua prédica na capela ecumênica do hospital em que está internado para tratamento mental”.

O pastor aceitou com humildade o tratamento de “Pastor Pinéu”. A reportagem não o afetou em nada. Mas Preta-Maria, revoltada com o sinismo do repórter, viu naquele episódio a influência clara dos kabilos do mal sobre a mente do autor da reportagem. O Conselho da Igreja evangélica achou mais prudente não se pronunciar. Mas o diretor do próprio jornal viu o perigo de ser acusado de preconceito e advertiu o repórter.

O jornalista justificou-se dizendo que Philippe Pinel fora um grande cientista, e o primeiro a tratar com dignidade o doente mental no hospital Lá Salpêtrière, do qual foi diretor por muitos anos, em Paris. A alcunha que dera ao religioso tinha significado de mérito, e não o significado popular de “doido” que a corruptela “pinéu” passou a carregar.

Discutido o assunto no Conselho, a decisão foi de que, uma vez que o Pastor era capaz de encher diariamente a capela do Hospício para ser ouvido, que ele fosse tirado de lá, e conduzido a Pastor da nova igreja, em cujo projeto ele próprio havia, inicialmente, trabalhado. Quando isto lhe foi proposto, sua resposta ao Conselho foi taxativa:

—Caros irmãos! O Senhor Deus voltou seus olhos para mim, levou-me a reconhecer meus erros, que até então eu não percebera, e entregou-me almas em desespero a serem socorridas. Vejo os frutos do meu trabalho e considero que ele engrandece a nossa fé evangélica. Inúmeras conversões já ocorreram. Aqui o Senhor me colocou e aqui me encontrará enquanto Ele me inspirar o que fazer para Sua maior glória, neste lugar. Aleluia!

«12 3

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 04-07-2018 e revisada em 12-07-2018.

Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Pastor Evangélico e os Kabilos do Mal. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2018.