O Pastor Evangélico e os Kabilos do Mal

Hoje: 26-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

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Incendiado pelo licor caseiro servido ao fim do lanche, o pastor quis ter o prazer de admirar o valioso bem cuja compra acabara de negociar e onde, removidas as estátuas e quadros – que devolveria ao bispo –, um templo evangélico provisório seria imediatamente instalado. Mas, o local agora lhe pareceu estranho! Teria errado o caminho, tão imerso estava em pensar na futura igreja?

O que viu foi um velho parque abandonado, tomado pelo mato ralo que quase ocultava o que restara de um banco de jardim, com laterais de ferro decorado, exibindo crostas de ferrugem, e assento de ripas apodrecidas, debaixo de um madeirame rachado e enegrecido do que aparentemente fora uma imponente pérgula. Restos de cascalho avançavam entre as touceiras de vassourinhas e espinheiros, marcando antigos caminhos. Ao fundo uma árvore frondosa, mas doente, enroscada de cipós parasitas que ainda não a tinham inteiramente vencido.

Sentindo-se cansado, ainda por culpa do licor, o pastor decidiu sentar-se no que restava do banco.

Um velho baixo e barrigudo, com tufos de cabelos brancos nas laterais do crânio liso, e barbas brancas, entrou a passos miúdos e rápidos na capela. Das folhas da porta restavam os gonzos de ferro presos ao portal de pedras. Uma galinha espavorida saiu e tentou voar para o meio da rua, cacarejando assustada. Em menos de um minuto o velho reapareceu levando, apressado, três ou quatro ovos em um saco de plástico.

Quando deixou de dar atenção ao velho, o pastor se deu conta de um grupo de quatro moleques de pé à sua frente. O mais alto disse com ares de mofa:

—Você esteve aqui pela manhã, e parecia interessado em comprar a capela…

O pastor não podia compreender porque os quatro riam dele.

—Ah! certamente preferiu a outra, que está nesta mesma rua – disse o moleque, indicando com um gesto a direção; – é muito bonita e a praça que tem em frente é cheia de flores…

O pastor sorriu como se despertasse de um pesadelo para a realidade que fugira. O moleque falava da capela que ele vira. “Então era como ele pensava: havia errado na entrada da transversal e tomado o caminho errado. Era naquela rua, porém mais acima do ponto em que estava” – acreditou. Mas debalde caminhou pelas calçadas, em um e outro sentido. Quando pela terceira vez pediu ao mesmo porteiro de um edifício, informações sobre a capela, suas forças já exauridas, este concluiu que ele estava louco, e certamente iria desfalecer se continuasse a caminhar apressado de um extremo a outro da rua. Telefonou para a polícia solicitando socorro e os policiais que apareceram decidiram que, como ele não apresentava nenhum ferimento, nem parecia haver cometido qualquer crime, o melhor era levá-lo a um hospício.

*

Os irmãos de fé que o visitavam no hospital para doentes mentais a que fora recolhido, notavam o quanto melhorava a cada dia, animando-se a conversar e mesmo a dar conselhos sensatos e admiráveis para questões que alguém lhe apresentasse. Mas com frequência tornava-se absente por uns momentos, absorto em algum pensamento que persistia em aferroá-lo como uma vespa venenosa que não lhe dava paz. “Eu não menti” costumava gritar com o rosto vincado pela angústia, e de imediato caia em forte depressão. Não fosse por isso já estaria de volta às suas pregações e à assistência religiosa da sua igreja.

Mas, afora os surtos nervosos, não parecia um homem que se sentisse mal ou infeliz. Havia tanto trabalho que podia fazer para ajudar os outros internos e ao próprio hospital, que fez disso seu motivo de viver, enquanto estivesse preso ali. Para todos que encontrava tinha um sorriso, e não temia intrometer-se para ajudar. Pela manhã auxiliava tanto os cuidadores no recolhimento dos urinóis e da roupa suja da enfermaria, quanto aos enfermeiros que limpavam e banhavam os doentes. Lavava o pátio com jatos de água de uma mangueira. Terminados os serviços de higiene, ele então tomava o seu banho e vestia seu traje clerical. Algumas vezes ainda ajudava na cozinha mexendo a sopa nos grandes caldeirões em que Preta-Maria preparava a comida para os internos.

O pastor sentia um prazer restaurador de suas energias ao ajudar a jovem técnica de terapia ocupacional, uma criatura bela, suave, delicada, de família rica, e muito simpática. Conseguiu para ela uma estante – algo tosca –, onde podia colocar em exibição as melhores pinturas feitas pelos internos. Planejava inscrever seus autores na próxima bienal de artes.

Quando um louco sofria uma crise de violência, logo o Pastor se apresentava para ajudar a acalmá-lo, muitas vezes convidando-o com brandura a orarem juntos. Com isto fez diminuir os episódios violentos e cruéis de meter o louco em uma camisa de força para dominá-lo.

Orava constantemente e passou a pregar na capela do hospício quando soube que era uma capela ecumênica. Inicialmente tinha a ouvi-lo três ou quatro enfermeiras e alguns curiosos. Mas, sua audiência aumentou quando se fez conhecida a qualidade das suas pregações.

Antes do culto que promovia ao final da tarde, tocava o velho cravo que havia na capela, instrumento semelhante ao piano que ele já dominava muito bem. A diferença, além do timbre peculiar do cravo, era apenas que a este possuía cinco oitavas, e o piano 7 oitavas mais uma terça, problema ao qual conseguiu adaptar-se. Instalou no presbitério uma mesinha com jarra de água e um copo, ao lado da qual sentava-se um teólogo evangélico que vinha diariamente ao hospital auxiliá-lo no culto.

*

Incomodava-o o fato de que, à noite, na virada da lua cheia, Preta-Maria se encontrasse com prosélitos do candomblé para uma sessão de macumba, debaixo de uma arvore na qual instalou um cordão de luzes, no fundo do quintal do Hospício. Pensava abordar com ela essa questão, e a oportunidade surgiu, um dia em que ele cortava as fatias de pão que comporiam, com o arroz, o feijão e o chuchu, o almoço dos doentes. Ela o convidou para participar da sessão na noite daquele dia.

—Não posso aceitar, Preta-Maria. Isso não é coisa de Deus. A sua boa índole faz de você uma excelente pessoa. Mas essa cerimônia, me parece que você não devia promovê-la.

A cozinheira ergueu os olhos para o céu, como a pedir ao Senhor que lhe desse paciência.

—Ouça, pastor. A minha tribo africana acredita nos kabilos. Não são nem anjos nem demônios, mas almas dos antepassados que voltam ao mundo. Os kabilos do mal são moleques; não cobiçam a alma das pessoas, porém gostam de atanazá-las, confundi-las, para depois rirem dos desastres que sofrerão por sua própria culpa. As pessoas que são muito críticas, galhofeiras e debochadas, estão sob o domínio dos kabilos do mal. Os kabilos do bem, ao contrário, são silenciosos, sua discrição poderia ser confundida com timidez, e se comunicam em silêncio, como as ondas do mar fora da arrebentação. Preocupam-se com a perfeição e o sucesso no que fazem ou inspiram.

Preta-Maria pouco desviava seus olhos do pastor, a fim de mantê-lo atento. Prosseguiu, agora apelando para suas memórias:

—Minha mãe contava que fora seduzida por um cafetão que a abandonou, depois de explorá-la. Ela o esfaqueou e foi preza. Havia umas freiras no convento da Lapa, em Salvador, que se ocupavam de recuperar as condenadas por via da religião e do trabalho. Eram mulheres católicas chamadas “freiras do Bom Pastor”. O juiz permitiu que levassem minha mãe e outras prisioneiras de bom comportamento para serem reeducadas no convento delas. Minha mãe dizia que as freiras eram inspiradas pelos kabilos do bem, que endireitavam os caminhos para reparar o mal que faziam os kabilos do mal. Quando nasci minha mãe já estava velha, e dizia que encontrar um homem bom e ter uma filha na idade em que estava fora mais um milagre que devia aos kabilos do bem.

Preta-Maria repreendeu o pastor:

— Se você não acredita, veja o que lhe aconteceu, Pastor. Os moleques que o enganaram e riram de você eram kabilos do mal. Mas, você foi socorrido pelos kabilos do bem que inspiraram os policiais a trazê-lo aqui para recuperar-se. Se você aceitar, eles o ajudarão a reverter a situação em que os maus o meteram. Eles são uma espécie de anjos cuja bondade não está condicionada a nenhum credo.

— Agradeço sua advertência, mas isto não passa de conto da carochinha, Preta-Maria. Kabilos são um antigo povo das montanhas da Algéria, na África. Sua avó possivelmente não gostava deles e inventou essa história para meter medo nas crianças e fazê-las dormir mais cedo. Aqui também temos essas lendas: a mula sem cabeça” o “tutu marambá”, e outros. Deus me basta, Deus é fiel! Eu fazia pouco pelas pessoas, mas o Senhor sentiu a sinceridade em meu coração, e arrancou-me da mesquinhez, abrindo-me inesperadamente essa grande porta para ajudar a muitos dos nossos irmãos. Aleluia!

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Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 04-07-2018 e revisada em 12-07-2018.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Pastor Evangélico e os Kabilos do Mal. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2018.