O Rosto Transgênico

Hoje: 18-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

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Na tarde do dia seguinte o encontro dos designers da moda foi iniciado com um almoço leve para o grupo de participantes. Vincenzo lá estava, supervisionando o serviço, e chegou-se à mesa em que estava Edmund para cumprimentá-lo. Lamentou não ter ido encontrá-los no aeroporto, mas acabara de enviar duas cestas de flores para Flor Azul. Uma decoradora acompanharia a entrega, para decorar com elas o seu apartamento.

Flor Azul, deixada no hotel entediada e intrigada com o projeto de que falava seu patrão, almoçou com os dois guarda-costas em uma lanchonete ao lado do hotel. De volta, avisou que subiria para ver televisão em seu apartamento. Kico, que era casado, disse que ia fumar um cigarro ali por perto, mas Fratelli, que ansiava por uma oportunidade, subiu com ela para o quarto.

No local do encontro, o Conde Ermelino Borguini discursou na abertura do debate:

—Espero que compreendam a grandeza deste projeto.

Todos os modos de expressão da arte acham-se exauridos.

Estamos cansados de explorar a beleza da configuração natural do rosto humano. Chega de Cláudias Cardinales, de Marcellos Mastroianni, de tipinhos como Marilyn Monroe. A Mona Lisa já esgotou todos os seus ângulos de interesse estético. Os concursos de beleza perderam boa parte do seu glamour.

Na alta costura não foi diferente, Tivemos os ternos masculinos desestruturados, transformados em sacos de batata, sapatos femininos deformados com bico de matar barata, e outras tentativas de originalidade por falta de melhores opções criativas. Por falta de opções, a arte busca o belo na extravagância das formas.

A engenharia genética hoje abre infinitas possibilidades para modificações em qualquer peça do corpo humano. Mudar transgenicamente o rosto humano será, sem dúvida, um bom negócio. O laboratório Constructive Incorporation aceitou iniciar as pesquisas, e necessita que lhe seja fornecido o desenho do novo rosto. Faremos um consórcio para chegarmos ao primeiro protótipo. Depois dessa máscara pioneira, então cada Maison poderá vender seu próprio modelo. Eu os reunir aqui para discutirmos um projeto que terá por objeto fazer do rosto humano uma nova expressão de Arte.

O Conde, terminadas suas perorações a respeito do imenso lucro financeiro que o projeto traria para aqueles que havia convidado a participar, deu a palavra a um sacerdote de terno preto e colarinho branco.

O padre, bem humorado, começou por dizer que o mais perto que havia chegado da Alta Costura fora a proximidade de sua mãe, que costurava batinas para seminaristas. Estava portanto excluído daquela aventura. Apenas atendia ao pedido do seu dileto amigo o Conde Ermelino Borguini para dar, sob segredo de confissão, um parecer sobre a moralidade do projeto.

Iniciou seu discurso aludindo à figura de um filósofo italianasso:

—Nosso compatriota, o dominicano Giordano Bruno, depois de conhecer as descobertas de Galileu e a teoria de Copérnico, ainda no século XVI, convenceu-se de que o universo era infinito e constituído de incontáveis mundos povoados por seres inteligentes. Por essa sua adesão à ciência, foi queimado vivo na Piazza Campo de’ Fiori. Mas até hoje a ciência não encontrou meios de provar aquela sua hipótese, disse o Padre.

—Ao contrário de Bruno – prosseguiu o sacerdote –, eu tiro a minha crença em vários mundos da própria ideia de Deus, antes mesmo que a Astronomia nos revele que de fato existem. Deus é um Ser Infinito que deve ser reconhecido e louvado por seres inteligentes em todo o universo, e não por apenas esse punhadinho de gente do planeta Terra.

—E que feições têm esses nossos irmãos de outras galáxias, esses nossos irmãos ETs?– indagou o orador, após curta pausa. —As mais variadas, porque a evolução certamente seguiu linhas diferentes em cada mundo. O próprio homem não é um projeto acabado, nem física nem mentalmente – disse ele. —Fosse o ser humano um projeto acabado, poderíamos perder a esperança de que o mundo melhorasse, que o entendimento algum dia superasse a inclinação para a guerra e para o crime. Os seres do universo serão sempre projetos inacabados, porque só assim poderão evoluir para melhor.

Finalizando o seu parecer o padre concluiu:

—O Senhor deixou-nos a tarefa de nos completarmos com o uso do nosso livre arbítrio e da nossa inteligência. Chegamos a uma era em que o homem, através da ciência, pode interferir em sua própria evolução física e mental. O projeto para um novo rosto é, portanto, perfeitamente lícito. Se vier a contribuir para a melhoria do homem, não encontrará empecilho na Ética.

Após as palestras, foram trocados convites para o jantar, Edmond recusou vários, incrédulo de que pudesse atrair tanta atenção. Voltou ao hotel. Não viu no lobby nenhum capanga de plantão.

*

Pela manhã, Flor Azul não se juntou a ele para o café.

O gerente informou, depois de consultar os empregados:

—Ela saiu na companhia dos dois guarda-costas que estavam ontem no hotel.

Edmond ficou um pouco alarmado, pois investira muito dinheiro na modelo e o contrato de seguro dela ainda não fora assinado.

O gerente lhe disse que em casos anteriores, sempre aconselhou os turistas a informar o desaparecimento à respectiva embaixada.

Edmond achou que era cedo para fazer isso. Preferia falar primeiro com Vincenzo, e quando a viatura chegou, seguiu diretamente para o local das reuniões. A modelo, quando voltasse ao hotel, mandaria um recado em seu celular. Porém Vincenzo não participou do almoço nem esteve presente aos trabalhos. Em seu lugar apareceu o Giuseppe, que Edmond havia visto no aeroporto no dia da chegada.

Edmond sabia que pediriam sua opinião.

Quando foi sua vez de falar, colocou aos designers a pergunta: “Qual tipo racial escolheriam para modelo da nova face?” – ele havia anotado algumas diferenças – melhor vistas de perfil –, por julgá-las úteis na confecção das roupas femininas, e seriam sem dúvida úteis também para o projeto do novo rosto.

—Na preta predominam planos tendentes a horizontais, – disse ele –, e na branca, tendentes a oblíquos. Nas orientais, a tendência é para a vertical. O nariz da preta horizontaliza-se, achatado, como também seus lábios se fecham com bordas em plano horizontal. O topo do seu traseiro, mesmo quando é curto, tende a horizontal.

Houve alguns risos, mas isto não abalou o estilista

—Os da branca são lábios levemente proeminentes, o perfil do nariz é menos horizontalizado e mais afilado e estreito, e o topo do seu traseiro inclinado.

Mais risos.

—Em uma japonesinha a tendência dos planos do corpo é para a vertical. Seu rosto é plano; nem os lábios nem o nariz se projetam, parecem acomodados em uma fossa óssea. Então – propôs o brasileiro –, qualquer projeto de um novo desenho do rosto humano deveria levar em conta essas três modalidades de feições.”

Enquanto a maioria ria às escâncaras da sugestão, o designer inglês – noutros tempos a rainha do seu país fora a soberana das três raças – levou a questão a sério, e falou em um sofrível italiano:

––Acho muito interessante o que disse nosso colega brasileiro. Parece-me que, para essa discussão, deveríamos ter os três tipos que ele mencionou, representados em bustos de cerâmica.

—Mandar fazer essas figuras trairia o segredo do empreendimento – lembrou alguém.

Um outro logo apoiou a ideia dos bustos, lembrando aos demais:

—Vamos precisar de materializar nossas ideias de algum modo. Os protótipos de cerâmica poderão ser os mais práticos e seguros, considerada a simplicidade de sua fabricação e o envolvimento de apenas um artesão.

—Creio conhecer uma ceramista em quem poderemos confiar – disse o designer americano. —Claudine, de Elm Grove, Wisconsin. Em uma mostra artística de moda e esculturas em Chicago, vi os bustos feitos por ela, e também algumas caveiras detalhando a ossatura do rosto. Conversamos um pouco. Ela é PhD em medicina; portanto, dificilmente encontraremos alguém que possa, melhor que ela, colaborar com nosso projeto. Encarregarei minha secretária de encontrá-la.

Encerrados os debates da tarde, teve início o Coquetel. Mas Edmond preferiu passar pelo hotel e ir jantar no Angelino ai Fori, na esperança de que alguém no restaurante tivesse notícias de Flor Azul. Pediu ao Walter que estivesse atento.

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Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 16-10-2014.

Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Rosto Transgênico. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2014.