O Mistério da Tomada de Três Pinos

Hoje: 26-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

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Na manhã do dia seguinte padre Fidelino foi acordado por um chamado em voz alta:

—Venha tomar café! gritou-lhe Dom Segretti.

O intenso gorjeio matinal das aves, o raio de sol oblíquo e ainda pouco preciso na parede, um cheiro de noite bem dormida exalado das cobertas empurradas com os pés, que se desfazia cedendo ao aroma súbito do café, traziam a certeza de um dia feliz.

—Ainda vou rezar para Maria, Mãe de Jesus. Recomendei você a ela. Ela será o seu escudo. Você precisa se confessar para livrar-se de seus pecados!

—Ora, meu caro! Se me livrar dos meus pecados, perco minha identidade – disse rindo Dom Segretti.

À mesa, os dois sorveram com gosto o delicioso café preparado por Índia Maria. Comeram algumas frutas em silêncio. Então Dom Segretti objetou, com mal disfarçado ressentimento:

—Como eu poderia continuar padre se não tinha mais crença na Eucaristia? — O tom amargo em sua voz não passou despercebido ao sacerdote, que argumentou:

—Cristo não é como os profetas que morreram e apenas passaram para as páginas da Bíblia. Na última ceia ele disse aos apóstolos que ficaria com os homens até o final dos tempos, e que o pão e o vinho que lhes dava eram verdadeiramente o seu corpo e o seu sangue.

—Será que ainda me lembro das palavras da consagração? Me ajude, onde minha memória falhar.

Dom Segretti curvou-se sobre o pão que depositara em seu prato e disse pausadamente as palavras da Consagração, e padre Fidelino acenava com a cabeça a sua aprovação a cada uma. Assustou-se quando o amigo, erguendo a face sorridente, proclamou:

—Consagrei esse pão e vou comê-lo. – e depois gritou para a índia: —Traga a manteiga, que não quero comer pão seco.

Escandalizado, vendo que a intenção do amigo não fora a de reaprender o dito sagrado mas sim cometer um grave sacrilégio, o sacerdote tomou-lhe o pão com violência e raiva, e gritou-lhe: —“Como você foi capaz de fazer isso? você tem parte com o capeta!”

A índia apareceu por causa dos gritos que escutou. Viu o sacerdote enrolar respeitosamente o pão consagrado no forro que cobria a bandeja, e ajoelhar-se para uma breve adoração.

—Você vai caminhar atrás de mim até a porteira – ordenou o Padre Fidelino à índia. —Chame quem estiver aqui trabalhando, e vamos levar Cristo em procissão até o meu jipe.

Enquanto o grupo caminhava em fila, morro abaixo, alguns índios se juntaram ao cortejo e, chegados frente às casas, alguns outros mais. O sacerdote sentiu que a felicidade tomava o lugar de sua raiva e indignação contra o colega, quando uma índia mais idosa, informada do que havia acontecido, juntou-se ao cortejo para entoar um conhecido hino de louvor ao Santíssimo Sacramento, seguida pelo filho que tocava uma flauta de bambu. Todo o grupo acompanhou-a no canto sacro, e assim prosseguiram até o jipe, onde o sacerdote agradeceu, abençoou a todos, sentou-se, e iniciou sua viagem de volta.

Do alto do morro, o ex-padre Segretti via, com seu binóculo, o que se passava lá em baixo, no vale. Uma tristeza muito grande tirou a vivacidade do seu olhar. Nunca vira uma demonstração de fé tão forte quanto a dada pelo padre Fidelino Bonato. Ele, ao contrário, se reconhecia presunçoso, arrogante, e ao mesmo tempo um debochado. Realmente, aquela vida de baixeza em que caíra lhe parecia, agora, uma inexplicável e profunda queda intelectual e moral. Com uma forte determinação, prometeu a si mesmo que cumpriria à risca o que prometera ao amigo, que ele teria os recursos para o seu projeto de assistência social.

*

Não foi de imediato que Dom Segretti chegou a um plano que lhe pareceu satisfatório. Isto aconteceu muito devagar, de salto em salto, de uma ideia em outra que aperfeiçoava a anterior. Não deixou que os Coronéis suspeitassem de que ele lhes preparava uma armadilha, sem se importar muito com uma represália que pudesse lhe custar sua vida. Quando o plano se completou, passou a executá-lo.

Redigiu uma carta na qual reproduzia a “confissão” do Coronel Heitor, incriminando a si e aos outros dois senadores. Descobriu onde se encontrava seu grande amigo no Curso de Teologia do Seminário Internacional na Alemanha, Hanz Veberbauer, que aceitou guardar consigo, por até seis meses, a carta de denuncia das atividades criminosas dos três senadores, suas vidas dissolutas e suas contas milionárias no Credit Suisse, entregando-a à Interpol, ao final daquele prazo.

Vendido o sítio de modo o mais sigiloso possível, estava pronto para dar o cheque mate nos três coronéis.

*

Já haviam se acomodado em sua mesa habitual, e logo tinham no colo as escolhidas para a noitada que começava. O coronel Malvino, com sua prótese de pele de porco, nunca faltava, mas vinha apenas para beber. O delegado os observava de uma mesa pouco iluminada, ao fundo do salão. Foi então que Dom Segretti apareceu, puxou uma cadeira para sentar-se a mesa com eles, o que não era raro que fizesse. Esperavam que tivesse uma anedota para contar, mas desta vez Dom Segretti estava sério.

—Desculpem-me, Coronéis. Peço-lhes que leiam esta carta. Tenho uma cópia para cada um.

Ao ver na carta toda a verdade contada por ele a Dom Segretti, a reação do coronel Heitor foi violenta. De um salto pôs-se de pé, derrubando a mulher que tinha no colo.

—Traidor! – gritou, e com a arma apontada para o ex-padre, acionou o gatilho. O tiro não saiu: não havia balas no pente!

—Pensa que vai nos chantagear? – berrou o coronel Malvino, pondo-se também de pé e avançando o corpo sobre a mesa para agarrar Dom Segretti pelo colarinho da camisa.

O delegado que estava atento, surgiu em cena e tomou a arma do Coronel Heitor. O coronel Santinho não se abalou. Pediu calma e com autoridade acabou com o reboliço dentro da boate. Acenou para os músicos e as sanfonas voltaram a zoar e os casais a namorar, entendido que o incidente fora apenas uma briga entre bêbados, comum de acontecer.

—Quero fazer um acordo com os senhores ‒ disse Dom Segretti, reatando a conversa. —Saquem de suas fortunas o necessário para concluir todas obras que estão paralisadas e realizar as que foram autorizadas e nunca começadas, ou denunciarei os senhores e as empresas envolvidas na corrupção que impede o progresso do município. A um sinal meu o segredo das tomadas de três pinos será revelado à imprensa e às autoridades vocacionadas a salvar o Brasil das potências criminosas como a de que os senhores fazem parte.

Ao fim do seu discurso Dom Segretti ergueu-se, disse mais apenas um “boa noite” e desapareceu pela porta de saída da sua boate.

—Vamos lá para fora caminhar um pouco, ao ar fresco da noite, para pensarmos, com calma, o que fazer – propôs o Coronel Santinho.

O delegado reapareceu cortando-lhes o caminho, para devolver ao Coronel l Heitor –, com um largo sorriso que lhe pregueava as bochechas –, sua cópia da carta que deixara cair no chão, quando sacara sua mauser.

As luzes do letreiro da boate atraiam revoadas de mariposas, enquanto dezenas de outras mariposas de mini-saias e saltos altos conversavam em grupos nas proximidades dos barracões de aluguel, a esperar por seus clientes habituais, os trabalhadores das fazendas próximas, que chegavam a cavalo ou em superlotadas caminhonetes.

Onde acharam que poderiam conversar sem serem ouvidos – por trás de uma Kombi enferrujada e sem rodas –, os senadores passaram a discutir o que fazer.

—Vamos mandar matar esse padre renegado– sentenciou o Coronel Malvino.

—A coisa não está assim tão simples – analisou o Coronel Santinho. —Antes de devolver a carta que pegou no chão, o delegado teve tempo de ler o conteúdo dela. Calar o delegado é mais urgente que entrar em acordo com Dom Segretti.

*

Nunca mais se ouviu falar de Dom Segretti. Ele escapou dos assassinos de aluguel ingressando em um convento distante, de uma ordem religiosa na qual o noviço era obrigado a usar barba e a adotar um nome religioso. Temerosos de que ele, onde estivesse, os denunciasse, os três senadores decidiram cumprir a sua parte do acordo. A capital do município passou por súbito desenvolvimento: ganhou ruas asfaltadas e praças, rede de luz, um hospital, uma creche, um liceu para jovens, um cinema e muitas outras melhorias.

*

Os “Três pinos” se reelegeram senadores ainda um par de vezes – ninguém foi preso.

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Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 30-09-2017 e revisada em 14-10-2018.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Mistério da Tomada de Três Pinos. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2018.