Liberalismo

Hoje: 25-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

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V – A sociedade Liberal

O estado social é uma realidade natural para o homem – seja como tribo, aldeia, grupo étnico, nação –, e não nasce com um contrato. A concepção do contrato social não passa de uma ferramenta para representar o acordo tácito entre os indivíduos para constituir uma proposta de organização social e governo. Uma constituição representa esse acordo e, no caso do Liberalismo, confere ao governo a faculdade de reprimir o desrespeito ao direito individual entre os súditos – inclusive o direito de propriedade –, e aos súditos o direito de destituir o governante que abusa contra esses mesmos direitos.

Como doutrina política, o Liberalismo tem sua definição somente no início do século XIX, com a proposta de um governo constitucional feita por Royer-Collard e pelo Duc de Broglie, genro de Madame de Staël, proposta também defendida por outros proeminentes políticos como Guizot na França, Cavour na Itália, e von Rotteck na Alemanha.

Divisão do trabalho e propriedade.

Para o liberalismo, o homem se desenvolve quando expande sua riqueza no sentido daquilo que toma por seus valores e seus ideais. Não lhe é imposto, de fora, nenhum valor ou ideal. Para alguns a escolha pode ser a maior riqueza material possível, enquanto para outros uma riqueza moderada, não a maior possível mas a que lhe dê os meios para atingir maior riqueza intelectual e cultural. Ao desenvolver-se o indivíduo, num sentido ou noutro, contribui para promover o desenvolvimento social.

A instituição da propriedade e da troca de mercadorias torna possível a divisão do trabalho. O produto é propriedade do seu produtor, e pode ser trocado livremente pelo que é produzido por outros indivíduos, ou por objetos de valor reconhecido por todos – a moeda –, ou algum bem. O comércio é o sistema de troca indireta, em que um bem de comum aceitação e que possa ser facilmente entesourado (normalmente uma moeda), pode ser trocado, em quantidade e valor comparável, por algum outro produto especificamente desejado.

A propriedade em terras.

Os primeiros homens ocuparam e habitaram porções de terra virgem, e assim indivíduos, tribos, e nações se proclamaram proprietários do que estava ao seu alcance manter e defender como próprio.

Uma intrincada relação de propriedade, compreendendo trabalho escravo, cobrança de tributos, premiação à nobreza, servidão, morgado, etc. desenvolveu-se com o absolutismo. Do ponto de vista Liberal, se mantivermos fidelidade ao pensamento de Locke, o homem é dono da terra da qual foi o primeiro a tomar posse, ou que tenha adquirido, porém só a manterá com legitimidade se é apenas razoavelmente ampla para nela situar sua moradia, ou empregar o trabalho para seu sustento, ou para extrair dela produtos na base da divisão do trabalho (produzir o que não consome mas que lhe servirá de troca por outros produtos e para o comércio de interesse da sociedade). O homem liberal sempre aceitará essa limitação: a posse de latifúndios improdutivos nunca foi parte da filosofia liberal.

Rousseau porém criticou acerbamente a Locke, dizendo que mesmo que utilizasse a terra para seu sustento, nenhum indivíduo teria o direito de possuir um pedaço de terra, porque a terra pertence a todos. Quem quisesse ter tal propriedade teria que pedir autorização a todos os homens. Ora, a terra pertence a todos porque todos já a ocupam. O que se discute é a proporção, pelo seu significado econômico. A opinião de Rousseau na verdade trai suas tendências absolutistas, porque o ponto onde pretende chegar é que os indivíduos, não desejando trabalhar em terras que não lhes pertencessem, poderiam ser forçados pelo Estado a fazê-lo, para que não houvesse falta de alimentos.

Igualdade.

É um modo mais claro de ver as posições do Liberalismo, se as examinamos em oposição ao pensamento dos grandes homens que a ele se opuseram. Rousseau está na origem do Liberalismo, deu a ele sua contribuição, porém difundiu ideias que haveriam de inviabilizá-lo na França, sem deixar nada em seu lugar, salvo sua tese (neo-platônica) da “vontade geral” e da propriedade coletiva, que constituiriam logo os fundamento do Socialismo e do Comunismo na Europa.

A origem da desigualdade entre os homens pode não ser apenas a que Rousseau aponta. Em sua época nada se sabia, por exemplo, da influência genética, da disparidade biológica que influi na diversificação dos interesses e do nível de satisfação e realização das pessoas. Ele acreditava que o Estado poderia dar educação igual para todos e isto levaria à igualdade. Entregou seus próprios filhos a orfanatos públicos.

Para o Liberalismo, a igualdade é apenas de direitos, no sentido de que não admite a existência de restrições de liberdade e oportunidade por motivo de credo, raça, ou origem social. Quanto ao progresso de cada um, é livre a concorrência de aptidões, e onde muitos concorrem ao mesmo prêmio, não há porque dar a vitória ao menos apto, ao mais fragilizado, ao menos preparado, em detrimento dos que tenham realizado maior esforço e mostrado mais habilidade, e poderão, com seu talento e competência, servir melhor à coletividade. Assim o desenvolvimento dos indivíduos, tanto no sentido material como cultural, se escalona conforme o apetite e a capacitação de cada um para atingir os melhores níveis.

A liberdade de expressão.

Uma decisão da maioria necessita da liberdade individual para que seja autêntica, e da liberdade para formular sua opinião e trocar pontos de vista com os demais. Isto requer liberdade de expressão, de imprensa, de formar livremente sociedades e partidos, sem medo de repressão. Benjamim Constant chega a dizer, no seu Principes de Politique, que a publicidade é a única defesa dos indivíduos contra a tirania.

A liberdade de expressão é também uma liberdade de reivindicação, de modo que grupos liberais podem querelar entre si na negociação de salários, carga horária de trabalho, debates políticos, questões ligadas à economia, à educação, à preservação ambiental, assistência aos idosos, e em fim, tudo o que possa ser trazido a debate como de interesse para a o desenvolvimento econômico e social com solidariedade.

O Governo.

Adam Smith enumera três tarefas do governo: proteger o grupo contra a violência externa; proteger internamente os membros da sociedade de injustiças e opressão dos demais; e erigir e manter as instituições publicas e as obras públicas as quais são de tal natureza que não seriam lucrativas individualmente, porém representam grande vantagem social. No entanto, a sociedade tem hoje necessidades e problemas muito mais complexos que à época em que nasce o pensamento liberal. Os países contam com populações milhares de vezes maiores que as de então. E cresceu o número de atividades em que a iniciativa individual ou de grupo não pode atuar sem o apoio de organismos coordenadores permanentes. A função do governo no sistema liberal deve crescer conforme se fizer necessário, porém este não pode nunca perder seu caráter de servidor da sociedade, e assumir o papel de seu senhor.

Segurança.

O exército, as polícias, a estrutura judicial são imprescindíveis à segurança e, no regime liberal, são formados por indivíduos que escolhem a carreira militar ou se engajam para servir em caso de conflito, mediante um soldo. O próprio povo terá que decidir, por sufrágio direto ou por decisão de seus delegados, a convocação geral. Também a polícia local é contratada pelas comunidades.

A assistência social.

A doutrina Liberal não considera o cidadão um “filho” da sociedade e portanto não é a sociedade nem o Estado (Sociedade mais o governo) que têm responsabilidade natural ou qualquer obrigação natural com os indivíduos. O direito à educação e à saúde do indivíduo é responsabilidade natural dos que o colocaram no mundo, seus pais. Por isto a família é uma instituição de primordial importância para o Liberalismo, ao passo que não tem nenhum valor para o Socialismo.

Na sociedade liberal, os homens não estão unidos apenas para garantir a sua liberdade, mas para formar uma sociedade com um liame que lhe permite (à sociedade) sobreviver e desenvolver-se. Esse liame é a solidariedade, sobre a qual Adam Smith, filósofo e economista liberal, dedicou seu livro The Theory of Moral Sentiments (“A Teoria dos Sentimentos Morais”), de 1759 – uma doutrina que recebeu do seu mestre Hutcheson. A solidariedade liberal é a solução para que a desigualdade de aptidões e a diversidade de recursos não conduzam à desigualdade de direitos e à falta de liberdade dos menos capazes.

A filantropia é tão original, tão imanente e essencial ao Liberalismo quanto sua defesa da liberdade e da propriedade. Os orfanatos, os asilos de velhos, as Santas Casas, as Casas de Saúde, as Associações Beneficentes em geral, religiosas ou civis, os fundos particulares para Educação destinados aos pobres e necessitados, são instituições inerentes ao Liberalismo, e se desaparecem ou se enfraquecem, com elas infalível e seguramente desaparece também o regime Liberal.

Para o Liberal, quando o governo promove a assistência social, ele tende a lançar impostos cujo produto é de difícil aplicação, e sua má aplicação faz com que o cidadão, além de pagar os impostos, acabe obrigado, por seu sentimento de justiça, a praticar o altruísmo e a filantropia para suplementar ou mesmo suprir a ação desordenada e ineficaz do governo no socorro aos pobres. Porém, o sistema liberal de ajuda filantrópica direta funcionaria melhor apenas se a população a ser assistida estivesse misturada à população que pode assisti-la. Quando a pobreza é regional, a atuação solidária torna-se mais difícil, e o papel do governo é importante, e os impostos se fazem necessários. Porém contribuinte precisa acompanhar a ação social filantrópica que confiou ao governo, pois o governo é apenas “suas mãos”, seu agente.

Impostos e Gastos Públicos.

O custo das ações delegadas pelo cidadão ao governo tem um custo a ser coberto pelos impostos. O governo no Estado liberal presta contas de duas naturezas ao cidadão liberal. Primeiro, presta conta do que arrecada; segundo, presta conta do emprego fiel dos recursos quanto à finalidade para a qual foram arrecadados. O Poder legislativo pode criar órgãos para examinar e julgar as contas dos administradores de bens e valores públicos.

VI – Economia Liberal

A economia Liberal não está presa a nenhuma teoria econômica previamente estabelecida. A produção e os preços não dependem do planejamento de uma agência do governo. Essa posição foi um repto ao Mercantilismo, uma política de intervenção do Estado na regulamentação dos preços, rotas comerciais, movimento dos portos, e de cada detalhe da vida econômica posta em prática pelas monarquias absolutistas. O economista liberal Adam Smith demonstrou os vícios dessa política em seu célebre “A Riqueza das Nações”. Os produtos têm seus preços livremente fixados pelo produtor, que terá a possibilidade de aceitar a resposta do mercado ou desistir da produção.

A resposta do mercado relativa a um produto dependerá do interesse por ele e da possibilidade de recursos dos consumidores para adquiri-lo. Se o interesse é grande e circula muito dinheiro, os preços serão altos, e isto criará uma atraente “oportunidade de mercado” que atrairá muitos outros para a produção. A oportunidade declina com a maior oferta do produto, o que faz caírem os preços a um nível mínimo para sustentar a produção e a comercialização, abaixo do qual a mercadoria desaparecerá do sistema. A isto se convencionou chamar “mercado livre” e está baseado, não na cobiça, mas em uma “harmonia natural de interesses”. Deste modo, a distribuição da riqueza é naturalmente proporcional ao mérito. A virtude do liberal não está, portanto, em operar com lucros mínimos, mas em não burlar a lei do mercado com a formação de cartéis que sustentam preços desnecessariamente altos, ou baixar os preços de uma mercadoria operando com prejuízo até eliminar seus concorrentes e deste modo criar um monopólio de produção, fazer propaganda enganosa de seus produtos, e outras medidas que quebram artificialmente a “harmonia natural de interesses” e prejudicam a sociedade.

Por outro lado, em uma sociedade pouco ativa, a produção tende a ser pequena e os preços mantidos altos, com muito lucro para poucos, por falta de quem aproveite as oportunidades de mercado. Algumas das virtudes do liberal devem ser, portanto, a disposição para o trabalho, o interesse nos lucros, e a atenção para as oportunidades do mercado.

O mecanismo “de mercado” funciona não apenas para os preços industriais, mas também para os serviços, considerado o que eles representam para o conforto presente, ou se são atividades que contribuem para o bem estar futuro. Assim, pesquisas médicas, experimentos educacionais, criação de creches, manutenção de hospitais, o policiamento e a justiça, interessam à coletividade que está disposta a comprá-los através do pagamento de impostos ou da criação de fundos particulares para quaisquer desses fins específicos. Por essa razão, a gestão de recursos em cada um desses campos consiste também em uma “oportunidade de mercado” em que o indivíduo buscará vender suas qualidades como prestador de serviços.

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Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 15-10-2005.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Liberalismo. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2005.