Nuno Marques Pereira

Hoje: 26-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

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Seu livro conta as reflexões e aconselhamento que um peregrino faz aos moradores ao longo do Caminho da Bahia que desde Cachoeira seguia para o sudoeste, levando às Minas do ouro. O peregrino segue de pouso em pouso, hospedando-se em mosteiros, fazendas e hospedarias dos sesmeiros ao longo do caminho, aproveitando para doutrinar sua filosofia conforme se apresentavam oportunidades em torno de casos, histórias e acontecimentos locais. Já salientamos os indícios que nos parecem bastante seguros de que tal viagem foi apenas imaginada. A obra é essencialmente de moral social e ética cristã. A razão da peregrinação do velho é o interesse em analisar as causas das perturbações políticas que nessa época agitava a capitania de São Paulo e Minas, em torno da disputa pelas minas, que os judeus portugueses cristãos novos invadiam e dominavam, em detrimento dos paulistas, os descobridores dessas minas. Essa disputa havia motivado a chamada Guerra dos Emboabas, que o Peregrino da América condena.

A erudição de Nuno Marques Pereira transparece da abundância de citações por toda a sua obra. Seu livro mostra que Nuno Marques Pereira conhecia profundamente a filosofia clássica, pelas citações precisas que faz de Aristóteles, Platão, Diógenes, Cícero e outros pagãos, alem dos cristãos Santo Ambrósio, São Tomás, Santo Agostinho, e dezenas de outros padres e santos da Igreja, e referir-se inúmeros personagens da história grega, romana e portuguesa paralelamente. Muitos nomes citados por Nuno são hoje desconhecidos e de difícil identificação no cenário histórico ou filosófico. Aí está, aliás, uma fonte de objetos de pesquisa que poderá eventualmente revelar algum erudito e autor esquecido.

Nuno conhecia com certeza o Utopia (1617), de São Tomas More (1478-1535), chanceler da Inglaterra reinando Henrique VIII, no qual parece inspirar-se. Pelo menos o início do Utopia e do Peregrino da América são muito semelhantes em estilo. O herói do Utopia é um sábio viajante, Rafael Hythlodaye, com o qual More e um amigo se deparam numa praça frente à catedral, na Antuérpia. Cenário parecido cria Nunes Pereira para o encontro com seu personagem, no Capítulo I do primeiro Volume. Diz que se achava na praça junto à Igreja de Nossa Senhora da Vitória, numa tarde de verão, quando se depara com um venerável Ancião que dirigia seus passos para o mesmo lugar, onde ele se achava. Efetivamente, no Capítulo XXVIII, último da primeira parte, o autor mostra conhecer o drama de Tomas More, aludindo às instancias da mulher daquele filósofo e mártir católico a que se retratasse para escapar ao cadafalso e este diz em resposta que não trocaria os poucos anos que lhe restariam de vida na terra pela recompensa em guardar a fé, na eternidade com Deus.

Declarando-se um peregrino, diz ao Ancião o quanto merece louvor o que, desprezando o conforto em sua Pátria, peregrina por terras alheias em busca de mais largas experiências: “por cuja razão é o sair da Pátria, o que faz aos homens mais capazes, e idôneos para mui grandes empresas, e suficientes para tudo; como o tem feito a tantos Varões ilustres”. E logo aí aproveita para dar uma lição de ética: “Porém, há de ser com tenção de não mudar só de lugar, senão também de costumes; porque é certo, que quem peregrina acompanhado de seus vícios, mais valera não haver saído; pois tornará mais perdido, que aproveitado: porque as enfermidades da alma não se curam com a mudança do lugar. O Peregrino vai por onde há de achar cada dia novos costumes, e os deve ser, e aprovar; e não repreendê-los: pois é mais razão acomodar-se ao uso da terra, que pertender (sic), e querer trazer aos mais ao costume da sua Pátria. Há de considerar que vai obedecer às leis, que achar estabelecidas; e não a dar regra aos mais: e que vai aprender, e não a ensinar. E peregrinando assim, se qualificará em um perfeito Heróe” (p.22-23, vol.I)

No Capítulo II inicia seu discurso moralista. Dá a ambição como irmã da Soberba, e ambas produzidas da Inveja. Exemplifica com o Imperador Cômodo, Calígula e Nero, e lembra que Dario pode ter sido o primeiro Rei a cunhar dinheiro. Cita Sêneca: “as riquezas fazem aos homens altivos, soberbos e invejosos: e que são poucos os Ricos e Grandes do mundo que não tenham estes efeitos consigo”. Nos tempos modernos cita a Robert, Conde de Essex, executado por suas ambições políticas, e que fora amigo de Francis Bacon.

Capítulo III. Aqui dá vários exemplos históricos, sobre quantos souberam ser virtuosos, apesar de terem riqueza e poder, e diz que o ouro tem valor conforme seu dono: “E reparai, que sendo só de uma mesma espécie este metal, toma os efeitos das pessoas, em cujo poder se acha”. Compara o avarento ao porco: “O cevado, enquanto vivo, para nenhuma coisa serve; e só trata de comer, e engordar: o que se não acha em outros animais, como largamente tratam vários Autores, e com especialidade Jerônimo Cortez no seu Tratado dos Animais, assim domésticos, como silvestre, e ainda voláteis. Porque vemos, que o boi trabalha, o cavalo carrega, o carneiro dá lã, a cabra dá leite, o cão caça, o gato limpa a casa: e finalmente não há animal, que não tenha o seu ministério. Porém, o Cevado, só depois de morto se aproveitam dele: come-se-lhe a carne, guarda-se-lhe a banha, apanha-se-lhe o sangue, não se lhe perdem os miúdos, e finalmente tudo se lhe aproveita. Assim também o rico avarento: em quanto vivo, para nada vale; tanto que morre, para todos serve. Aparece o dinheiro, que tinha escondido, e talvez pelo ter furtado: come o parente, aproveita-se o testamenteiro, pagam-se os clérigos, remedeiam-se os pobres, satisfaz-se aos que trabalharam no Funeral: e enfim todos se aproveitam, porque em sua vida a ninguém prestou.”

No Capítulo IV, discorre sobre formas de pobreza e explica ao Ancião porque, se a Pobreza é tão louvada, e de todos acreditada por virtude, como fogem muitos dela. A Justiça, “vista de perto, ofende; porém assentando-se no tribunal da razão, quem a quiser ver, reconhecerá suas excelências”, e assim também é com a Pobreza.

O Capítulo V é dedicado à memória de D. Fr. Manuel da Ressurreição, Arcebispo da Bahia, enterrado no Seminário de Belém, próximo a Cachoeira, em 1691. Diz ter lembrança do Arcebispo, provavelmente de quando aquele prelado esteve em Camamu, em sua jornada de visita às vilas do sul da Bahia, “por ásperos campos e rios caudalosos”, tendo permanecido mais dias naquela vila que nas demais “pelo maior concurso da gente, e ter mais que fazer na sua visita, e Missão”.

Cap. VI dá uma relação dos Bispos e Arcebispos da Bahia, até o seu tempo.

Os Capítulo de VII a X são eminentemente devocionais; no VIII fala brevemente da criação do homem segundo a Bíblia e, a partir do XI, apresenta a seqüência de comentários relativos aos 10 mandamentos

No Capítulo XII do primeiro volume cita Rocafuli a respeito dos tipos de juramento aceitos nos tribunais e analisa os 3 principais. Fala de certas práticas dos tribunais a respeito de condenações por dívidas. Faz sobre o assunto abundantes citações de Juristas e filósofos. Mostra ter conhecimentos jurídicos, o que está de acordo com a afirmação de Rodolfo Garcia, em sua nota biográfica ao início do Volume I, de que “Estudara Direito, mas não completara o curso e não se graduara, – é ele mesmo quem o diz”.

Sobre a natureza humana afirma: “A nossa natureza, de uma composição, que nem sempre pode estar em um ser: motivo (além do mais) porque chamam ao homem mundo abreviado. Porque assim como sucede estar o mundo em umas ocasiões com serenidade, em outras tempestuoso, já ventando, já chovendo, e enfim noutras com relâmpagos e trovões, assim também o homem em uma ocasião se acha alegre, em outra triste, já gritando, já chorando, e mal dizendo-se” (p.137).

Cita Dom Francisco Manuel, a quem chama “o nosso Séneca de Portugal” que havia dito que sempre desejara aos seus inimigos tres males: pedir, ainda que lhe dessem; jogar, ainda que ganhassem, e pleitear, ainda que vencessem (p.149, Vol.I).

No Capítulo XIII, a respeito dos escravos adverte: “(aos domingos) vede se assistem aos Ofícios Divinos com aquela decência, que são obrigados, e trazei-os outra vez em vossa companhia. E do meio dia para a noite, deixai-os ocupar em alguma coisa, que nunca lhes faltará em que se entretenham. Dai-lhes algumas férias no ano, em que totalmente cesse o trabalho, comam, folguem e se alegrem, para que cobrem alento e desejo de continuarem no serviço; e trazei-os sempre diante dos olhos, que o prêmio e o castigo são dois eixos em que se move o acertado governo”(p. 156, Vol.I)

No Capítulo XIV, sobre os extremos das emoções diz: Primeiramente, haveis de saber que as causas excessivamente intensas produzem efeitos contrários. A dor faz gritar, mas se é grande, faz emudecer; a luz faz ver, mas se é excessiva, cega: a alegria alenta, mas se é estupenda, mata; o amor pode ser extremoso que passa loucuras; o ódio poderá ser tão extraordinário, que cometa absurdos; as espécies se fazem venenos e matam, tanto que passam dos quatro graus de quente a frio. Esta é a razão porque mata o grande pesar ou a demasiada alegria.” E continua:

“Mas, falando agora dos efeitos do pesar: sabeis que o homem tem alma racional, que os outro animais não têm. Dela resultam a reminicência, memória, entendimento, razão e vontade, situadas na cabeça, membro mais nobre do corpo, sítio e morada da alma racional. Pelo entendimento entende e sente os males e danos ressentes; pela memória, os males passados; pela razão espera e teme os males futuros, e pela vontade aborrece; estes três gêneros de males, presentes, passados e futuros, ama, deseja, teme e aborrece” (p.170, Vol.I).

No Capítulo XVI afirma: “Pode um homem matar em sua fiel defesa, ou por algum outro incidente, que poderá ter desculpa. Pode furtar em tão extrema necessidade, que não seja pecado, porque no tempo da necessidade extrema todos os bens são comuns” (p.218, Vol.I).

Sobre a paixão, define seu ponto fraco: “Vamos ao remédio, que me pedistes. Haveis de saber, que para sarar do amor e dessa enfermidade (a paixão) é necessário haver ausência. Muitas doenças se curam só com a mudança do ar: porém, a do amor só se cura com a (mudança) da terra. É o amor, como a lua, que em havendo terra (distância) entre meio, logo se eclipsa” (p. 233, Vol.I).

Até o Capítulo XXV os temas são religiosos, relativos a penitências respectivas a transgressões aos dez mandamentos.

No Capítulo XXVI, que é o antepenúltimo, a narração do peregrino dá lugar à narração do personagem Pastrano, o qual na cidade da Bahia havia conhecido o Sr. Desengano, a Sra. Verdade e seus escravos Prontidão e Diligência. Neste capítulo faz uma crítica moral não de casos pessoais, mas das profissões (meirinhos, juízes, escrivães, mercadores, etc.).

O capítulo XXVII é a descrição do terremoto de Lima de outubro de 1687. E no capítulo final da primeira parte, o ancião que havia dialogado com o peregrino ao longo dos primeiros capítulos, agradece a “narração e conversação moral e ascética” que tiveram aqueles dias e dá-se a conhecer como “O Tempo bem empregado” (Bem empregado em ouvir o Peregrino, por certo).

A segunda parte do Peregrino – Volume II – são capítulos dedicados ao Palácio da saúde, Casa da música, Casa da poesia, Casa da matemática, em que mostra erudição em relação à astronomia em seu tempo; Casa da filosofia no cap. VII, na verdade dedicado à medicina, farmácia (boticas) e barbeiros (cirurgiões), seguindo-se os derradeiros capítulos tratando das enfermidades, da morte, do juízo, do inferno e do paraíso.

Ao final da segunda parte o Peregrino promete escrever um terceiro volume de suas reflexões, condicionando a promessa a que lhe apareça outra vez o seu personagem “Tempo bem empregado”, dizendo: “E por agora dobrarei aqui a folha desta escrita, até que suceda tornar outra vez o Tempo bem empregado, para continuarmos na terceira parte deste livro, quando assim o permita Deus.”

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Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 10-04-2000.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Nuno Marques Pereira. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2000.