Gabriel Marcel

Hoje: 29-03-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

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FILOSOFIA

O real. A contribuição de Marcel para o pensamento moderno consistiu da exploração e esclarecimento de um amplo escopo da experiência humana – confiança, fidelidade, promessa, testemunho, esperança, e desespero – que tinham sido deixadas de lado pelas escolas predominantes da filosofia moderna como não susceptíveis de consideração filosófica.

De acordo com Marcel, o objeto da filosofia não é nada separado de nós mesmos, não é alguma coisa sobre a qual fazemos perguntas com o propósito de encontrar uma solução. O objeto da investigação filosófica é o próprio investigador, não apenas porque é um Ser, mas porque ele é o primeiro Ser que ele próprio encontra em sua própria e imediata experiência no mundo. Então a primeira preocupação da filosofia é este fato imediato, a existência no mundo, e a filosofia deve necessariamente ser existencialista.

Começando ele mesmo sua filosofia pelo “Existente”, ele observa que a percepção não é uma simples representação de um objeto para o sujeito que percebe. Perceber um objeto não está fora de quem o percebe, mas é um ato do próprio Ser que misteriosamente se torna nesse objeto percebido.

A comunhão com o real. Uma intuição fenomenológica é seu conceito de “participação” significando uma comunhão direta com a realidade. A relação com o outro deve ser dialógica, uma relação entre o Eu total e o outro como um Ser, uma “presença”, um “mistério”, e não apenas um “objeto” ou “coisa” dotada de percepção, pensamento e expressão. Seu primeiro conceito central de “participação”, a comunhão direta com a realidade, foi elaborado gradualmente para esclarecer tudo, desde a consciência elementar de alguém em relação ao próprio corpo e percepção sensível, até a relação entre os seres humanos e o Ser último. Pela percepção o homem aprofunda de maneira nova e misteriosa sua participação no universo. A percepção é como a criação do universo no homem.

A primeira e mais íntima participação é com o corpo. Em virtude da distinção entre problema e mistério a união da alma com o corpo não está aberta a investigação. Para Marcel essa união é um mistério. Eu sou meu corpo, o que significa que estou “encarnado” em meu corpo e eu não poderia existir sem este misterioso “outro” que é meu corpo.

Através do corpo ele percebe os objetos que o cercam. Eles representam uma coisa transcendente para o homem. Através da percepção o homem transcende a si mesmo; fica em participação misteriosa com os objetos. Pelo ato da percepção os objetos ficam imanentes nele, de modo que os objetos não são uma terceira coisa, eles se tornam o “tu” com quem ele fala. Pelo ato da percepção o homem está aberto ao objeto do conhecimento e esse objeto está aberto ao homem. Isto faz da percepção um ato de amor. Do “tu” das coisas finitas o homem ascende a Deus, o “Tu” absoluto. É todo um caminho que não é o da razão, mas da fé, e esta fé somente é possível quando a caridade supera todos os empecilhos e todos os obstáculos. O homem assim se torna disponível a tudo e tudo se põe à disposição do homem. Essa relação requer uma abertura para aquilo que é outra coisa que não ele mesmo, requer disponibilité – disposições demonstráveis na existência diária.

A inteira e aberta relação entre seres, assim concebida, é essencialmente dialógica, a relação entre um Eu e um Tu, entre a totalidade de uma pessoa e a inteiridade daquilo que ela confronta – um outro Ser, uma “presença”, e um “mistério”, e não um “objeto” separadamente de sua percepção, pensamento e expressão.

Essa relação exige uma abertura franca, uma disponibilidade, envolvimento ou engajamento no dia a dia da existência. A posição oposta é a recusa de se abrir e de se engajar, dar crédito, ter confiança, uma disposição para negar tudo, para o desespero e mesmo para o suicídio. Tais possibilidades, para Marcel, são características da condição humana: o homem pode tanto negar quanto afirmar sua existência e tanto cumprir quanto frustrar sua necessidade de participar.

O oposto é também onipresente – a recusa de se abrir e de se engajar, dar crédito, ter confiança ou esperança, uma disposição para negar tudo, para o desespero e mesmo para o suicídio. Tal possibilidade, para Marcel, é uma característica essencial da condição humana: o homem pode tanto negar quanto afirmar sua existência e tanto cumprir quanto frustrar sua necessidade de participar no que existe.

A abstração do real. No mundo atual, o homem não sabe quem ele é, como um estranho para si mesmo. A dignidade e sacralidade do ser foi substituída pela ideia abstrata de função de sistemas. Nessa abstração, o homem vê a si mesmo como uma corporação de sistemas: biológico, mental e social (a objetivação de si mesmo). Sua capacidade de amar, de se admirar e de ter esperança se perdeu, na medida em que também perde o seu desejo de superar essa situação de alienação e escravidão.

Pela abstração o homem esquece a realidade da experiência, ou aqueles aspectos que não caem claramente em uma categoria dada, em um dos sistemas. Como resultado o homem adota um ressentimento em relação à experiência, uma atitude inteiramente oposta à admiração, humildade e caridade.

Causas da abstração: a ciência. A preocupação de Gabriel Marcel era haver o pensamento científico causado a falência da experiência humana. O pensamento científico, com seu reducionismo e tecnologia, evita o mistério da vida e fala de “problemas” e “soluções”. Ele coloca ênfase na distinção entre “problema” e “mistério”. Considera problemas todas as questões relativas a objetos fora de nós mesmos. Com respeito a esses nós podemos formular questões e deduzir soluções. Ele chama “mistérios” todas as questões relativas a nossa própria existência. As respostas a tais questões somente podem ser obtidas através de uma introspecção ou evocação mística.

Por trás da mentalidade tecnológica existe o perigo do homem ser tentado a ver a si mesmo como único agente criador de significados e valores. Dentro dessa visão, o mundo não é mais que uma fonte de matéria prima à disposição do homem, manipuláveis para satisfação de seus desejos. As pessoas então olham e admiram sua criação tecnológica, conferindo a si mesmas a glória, em lugar de à Deus Criador. Essa confiança nos avanços tecnológicos diminui nossa experiência de uma vida autêntica.

Causas da abstração: a posse. Outra distinção que faz Marcel é entre “ter” e “ser”. Ter implica um dualismo composto de um indivíduo que possui e uma coisa que é possuída, exterior ao possuidor. “Ser”, ao contrário, não admite qualquer dualismo. Então o homem não tem o seu corpo, ele é o seu corpo.

Pela posse, o homem ganha o poder de reter, conservar, proteger e usar de um objeto (objetivação). Marcel viu que a aproximação dupla de abstração e posse está na raiz dos problemas sociais. Enquanto ambos, abstração e posse são parte da vida, elas podem crescer excessivamente e dominar e ao fim destruir o ser do homem. A insistência em possuir coisas através do processo de objetivação (sem participação) limita a realidade concreta e sua “misteriosa plenitude”.

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Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 04-06-2001.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Gabriel Marcel. Filosofia Contemporânea. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2001.