As Filhas Adotivas

Hoje: 28-03-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

MARTINE

A candidata Martina Valentina – suas colegas francesas a chamavam Martine –, uma jovem italiana que estudava na França, respondeu com determinação para sua orientadora:

— “Ser adotiva significará uma propensão a uma vida criminosa?” Esse é o tema que escolhi para minha tese.

Perplexa, sem nada dizer, a mestra inclinou-se para trás, reduzindo o reflexo do seu jaleco branco sobre o vidro polido da escrivaninha.

— Sartre… é o que ele deixa transparecer em Saint Genet (pro.: san genê) – esclareceu a aluna. – Talvez eu até possa provar o contrário: proporcionalmente haverá mais pessoas de valor entre os filhos adotivos que entre os criados por seus pais biológicos.

A mestra ponderou, hesitante em aceitar tal projeto:

— Hoje, os temas de psicologia cognitiva são mais importantes. Não acha arriscado explorar uma área da psicanálise existencial? A banca poderá considerar sua tese um retrocesso.

Porém, reaproximando-se num movimento favorável – buscando mostrar-se compreensiva – a mestra insinuou de modo intimo e amigo:

— O que motivou a escolha, Martine? Alguém que você ama…

A aluna entendeu a reticência da mestra e revelou:

— A razão de minha escolha é que também eu sou filha adotiva.

A orientadora assumiu uma posição ereta, como a indicar uma assumida imparcialidade. Mas não tinha como esconder a sua simpatia por sua aluna mais brilhante:

— Tente! Pode dar certo – anuiu a mestra.

E no mesmo tom carinhoso de antes, disse, ao despedir a candidata:

— Volte a conversar comigo se sentir que algum conflito pessoal está interferindo nesta escolha.

*

A Diretora do presídio sugeriu-lhe falar com o capelão. Ele tinha acesso aos fichários e era um amigo e confidente da maioria das presas.

Ao padre Justin (justan), Martine disse que desejava entrevistar prisioneiras que fossem filhas adotivas, para saber se essa condição havia influído negativamente em suas vidas. Deixou com ele as feuilles (fêie) de consentement que cada presa deveria assinar, com a declaração de aceitar, com pleno conhecimento e de livre vontade, participar do estudo. Ele pediu um par de dias para escolher os nomes que indicaria.

Quando ela retornou para ter sua resposta, o capelão lhe passou os nomes de apenas três mulheres. Mas o fato de ser um grupo reduzido pareceu a Martine que tinha suas vantagens. Facilitaria seus planos de retirar as presas para um ambiente fora da prisão, para uma conversa em local ameno e livre. O problema mais sério julgou que seria convencer a Diretora a permitir a saída das três, não por uma hora para uma entrevista rápida, mas por uma semana inteira!

— Eu preciso ouvir o Juiz Corregedor – disse a Diretora. – Todas três têm muito bom comportamento, e duas delas já têm permissão para visitar a família no Natal – comentou, examinando demoradamente na tela do computador os nomes selecionados pelo capelão.

O padre deteve Martine por um momento mais.

— Pode não ser muito fácil lidar com essas mulheres – disse ele –, apesar de que são poucas. Acho que você deveria ter uma auxiliar experiente… a irmã Dominique. Ela gostaria de colaborar. Conhece as presas; é minha ajudante na Pastoral.

Ante a visível hesitação de Martine, argumentou:

— A Irmã não influirá em nada! Nosso trabalho não é buscar converter as presas… é ajudar, é infundir-lhes paciência, elevar o moral dessas infelizes. Tenho certeza de que irmã Dominique lhe será muito útil. Venha conhecê-la.

Na saleta reservada para a Pastoral católica, Martine viu uma jovem em trajes comuns, e não uma freira com hábito e véu como havia logo imaginado. A irmã levantou-se sorridente de sua mesa de trabalho, encantada com aquela visita. Certamente sabia do assunto que seria tratado, e apresentava sua alegria como sinal de sua disposição para servir.

Ao sair, quando o capelão lhe passou as feuilles (fêie) assinadas pelas mulheres, Martine estranhou que ele tivesse inserido entre elas uma assinada pela irmã Dominique.

*

Logo que lhe foi comunicada a autorização, Martine falou por telefone com Gianluca para o arranjo final de seu plano. Aqui também as coisas correram favoravelmente: baixa estação, pouco turismo, e tempo bom, sem chuvas.

Gianluca era um velho conhecido da sua família, das vezes que ela e seus pais adotivos passavam temporadas de férias nas montanhas do Trentino. Ele era o cheff em um restaurante em Madona de Campiglio, e havia reunido economias suficientes para deixar o emprego e comprar um barco de turismo no Canal du Midi (di midí), um negócio que dirigia com a mulher Louise (luíse). No último verão Martine, junto com algumas colegas, havia experimentado o passeio no barco do casal. Ela não podia pensar um modo mais seguro, tranquilo e inspirador para o seu trabalho do que conduzir as entrevistas com as detentas no mesmo barco, navegando pelas águas tranquilas e sombreadas do canal.

*

O Bel-Grosté esperava amarrado ao cais em Marseillan, um pequeno porto de pescadores na lagoa salgada de Thau (tô), separada do Mediterrâneo por uma estreita faixa de terra. A experiência dos hospedeiros conseguiu quebrar o embaraço das moças em poucos instantes. Jorgette pegou todas as sacolas de viagem das companheiras e as distribuiu pelas cabines. O restante da tarde foi empregado em satisfazerem a curiosidade sobre a embarcação, e uma alegre invasão da cozinha onde Louise preparava o que seria o jantar.

O barco a motor, com pouco mais de 30 metros, era um péniche (peníche) confortável, um luxuoso pequeno hotel flutuante. Do convés da proa – equipado com cadeiras de braços laqueadas de branco, para observação do cenário à frente –, descia-se por alguns degraus para a sala de refeições. Com paredes revestidas em mogno, o pequeno salão tinha ao centro uma mesa de jantar em que se sentariam dez pessoas, com dois sofás à entrada, junto a um bar com pia de porcelana e balcão. No convés da popa havia várias chaises longues (chése long) para se tomar sol, e uma mesa para refeições ao ar livre sombreada por um grande guarda-sol. Removendo-se parte do assoalho por um sistema automático, descobria-se uma pequena piscina que era cheia no verão. As cabines eram espaçosas, com dois leitos arranjadas em forma de “L”, um pequeno guarda-roupa, um banheiro com um box de chuveiro, e ar condicionado.

Uma vez que a viagem não teria a parte turística, Gianluca havia dispensado a sua guia turística e deixado na garagem a van que era utilizada para os passeios em terra e no apoio à navegação.

Sentados à mesa sob o guarda-sol, Martine estabeleceu com Gianluca – e anotou em sua agenda –, os locais de pernoite e os pontos no canal onde a embarcação se deteria para que ela fizesse as entrevistas. Desejava fazê-las livre do ruído do motor e sem que as detentas se distraíssem com os outros barcos ou com o cenário variado em cada margem, se estivessem em movimento. O projeto teria sido impossível nas ferias de verão.

*

O jantar à noite, servido no salão do barco, foi pura diversão, um alívio para a tensão que a novidade dos fatos havia criado desde a saída da prisão em Montpellier (monpeliê). Para divertir a si e às companheiras, Olga fingia-se inspetora prisional, e Henriette imitava os modos e a voz da Diretora. Não muito tarde, Martine encaminhou-as para as suas cabines, lembrando-lhes que no dia seguinte começariam as entrevistas. Jorgette prometeu-lhe que bateria à sua porta, para acordá-la na hora combinada com Gianluca para o café da manhã.

Antes de se recolher, Martine utilizou seu telefone celular para dar notícias aos seus pais adotivos do desenvolvimento de seus planos.

Demorou a dormir, recordando sua infância. A primeira conversa sobre sua condição de adotiva a deixara triste, mas com um sentimento de segurança, e de ser querida. Disseram-lhe que seus pais biológicos a haviam entregado às freiras porque, por algum motivo, não poderiam criá-la, e que ela poderia se informar com as religiosas sobre isso, quando ficasse mais crescida. Quanto a eles, queriam ter uma criança para educar e amar e se comprometeram perante o juiz a educá-la o melhor que pudessem.

— Meu pai e minha mãe voltarão? – havia perguntado.

— Podem um dia voltar, talvez… E se isso acontecer você poderá dividir o tempo entre nós: passar uns dias com eles, uns dias conosco. Eles gostarão de você o bastante para que você fique livre e possa amá-los com liberdade.

Mas, quem seriam eles? – se perguntava. Ela sabia que crianças adotadas fantasiam a respeito dos pais biológicos e a sua fantasia foi de que eram amantes e passavam as férias em Cortina d’Ampezzo, como faziam vários amigos de seu pai adotivo. Eles a teriam deixado na porta do orfanato para evitarem problemas insolúveis de herança com seus filhos legítimos já adultos – imaginava.

Seu sono foi agitado. Teve sonhos confusos recordando as férias de verão em Madona de Campiglio, a brincar com as amiguinhas no jardim da mansão de seus pais ao final da Via Castelletto. Tinha no sonho um temor de estar fazendo algo indevido e arriscado, vendo-se ainda criança a desobedecer a ordem de não sair de casa nos dias em que a cidade estava muito cheia de turistas. Apesar dessa proibição, várias vezes escapara com as amigas para ir comprar guloseimas na Casa del Cioccolato, na praça Righi, um dos locais mais concorridos e onde podia ver grande quantidade de gente passeando em grupos, jovens suecos e alemães sentados ao sol, no chão e nos bancos, ou às mesas na esplanada do Caffè Suisse, conversando animadamente, fotografando, ou comendo sanduíches e bebendo em latinhas.

As imagens do verão, carregadas de ansiedade, alternavam-se com outras, das férias de inverno, quando a cidade era outra e inteiramente sua, e abundavam momentos de felicidade. As altas montanhas, os telhados, as ruas e os gramados cobertos de neve, o campeonato de esqui; as funivias cheias de esquiadores, homens e mulheres com seus óculos escuros, o rosto quase desaparecendo em seus dispendiosos, muito estufados e coloridos agasalhos de frio, em cada estação com maravilhosos e surpreendentes novos modelos; os hotéis e restaurantes lotados com a nata da aristocracia de todo o mundo, e as alegres reuniões na mansão com os amigos de seus pais, em que ela era acarinhada por todos com elogios à sua inteligência e simpatia. Teria uma filha biológica sido mais amada do que ela, uma adotada?

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 04-11-2004.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – As Filhas Adotivas. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2004.