Hoje: 13-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Qualquer intelectual familiarizado com o estilo do célebre Padre Antônio Vieira teria logo afastado ou pelo menos colocado em dúvida que fosse ele o autor dos rascunhos encontrados no Vaticano. Mas o Secretário Papetti tinha um conhecimento apenas superficial da vida e das idéias daquele grande pregador, que fora também filósofo e diplomata. Aliás, foi exatamente haver sido Vieira um diplomata itinerante a serviço de Dom João IV o que motivou Papetti, um diplomata de carreira, a escrever uma nota comemorativa do tricentenário da morte do ilustre missionário jesuíta
Carlos Eduardo Afonso Papetti Torres de Castro e Silva, ou simplesmente Eduardo Papetti para seus colegas, ou o Secretário Papetti para os seus subalternos ou, ainda, apenas Papetti, para seus superiores e amigos, servia agora na Itália. Havíamos trabalhado juntos por dois anos em uma comissão interministerial, uma das muitas que caracterizaram a política administrativa do governo militar. Papetti colecionava pedras preciosas e semipreciosas, brutas ou lapidadas, e o fato de eu ser geólogo e membro do Grupo Executivo da Indústria de Mineração foi o liame inicial de nossa amizade. Havia uns cinco anos que eu não o via quando nos encontramos, por acaso, em Milão. E entramos em um café na Via Monte Napoleone, para conversar.
Para Papetti, mais que por dever de ofício, era usual vestir-se bem, pelo simples fato de comprar roupas e acessórios do vestuário no centro mundial da moda: usava um terno Corneliani, camisa Prada e gravata de Maurizio Marinella; os sapatos pareciam Hogan e os óculos ser de Salvatore Ferragamo. O suave perfume de uma colônia, provavelmente uma nova fragrância de Giorgio Armani, era tão discreto que não fazia primazia sobre o odor do chá quente nas chávenas postas à nossa frente nem ao cheirinho adocicado dos biscoitos na pequena cestinha de vime escuro.
Estava eufórico. Sua nota sobre Vieira havia sido publicada no principal jornal da cidade e a Embaixada fizera republicar o trabalho em um vespertino em Roma. Por essa razão, seu nome fora imediatamente lembrado para dar um parecer, quando o embaixador recebeu – enviadas pelo Vaticano, num gesto de cortesia – cópias de uns rascunhos manuscritos que se supunha fossem de Vieira. O documento fora encontrado junto com papéis da Rainha Cristina – da qual Vieira fora confessor em seu período na Itália –, em uma velha pasta dos arquivos de Clemente X.
Lembrei a Papetti que a investigação da autenticidade dos rascunhos deveria começar por uma comparação grafológica. Aconselhei-o a visitar o Arquivo Nacional, em Lisboa. Lá eu tivera em mãos o velho processo movido contra Vieira pela Inquisição do Santo Ofício, um maço de mais de oitocentas páginas manuscritas, costuradas com linha grossa, impecavelmente higienizadas e limpas, em que a escrita, porém, se conservava em parte legível, em parte esmaecida ou reduzida a manchas imperscrutáveis. E talvez eu lhe pudesse adiantar alguma coisa, se me enviasse uma cópia do texto, e para isso lhe dei o número do meu telefone-fax.
Enviou-me cópia do manuscrito e também o texto do seu artigo sobre Vieira. No artigo, salientava ser Vieira mais brasileiro que português – embora enaltecesse mais sua figura de embaixador plenipotenciário lusitano e pouco dissesse da sua lide com os índios na Bahia e no Maranhão. Quanto aos rascunhos, eram mais resumidos do que eu esperava, porém continham uma tese de certo interesse. Tratavam das relações entre os Arcanjos e cada uma das pessoas da Santíssima Trindade, e entre aqueles e as almas humanas no paraíso. Suprimidas as palavras riscadas, e inseridas as entrelinhas, diziam:
Podeis indagar: “Que fazem as almas que chegam ao céu?” – Apesar de já redimidas, não haveriam elas de desejar provar sua gratidão a Deus, e dar a Ele ainda mais certa razão de recebê-las próximo de Si?
O que indagais sobre as almas que alcançam o céu, podeis indagar também sobre os anjos e arcanjos. O que teriam recebido por missão, ou se encarregado de fazer os arcanjos, depois de cumpridas aquelas tarefas bíblicas por cujo sucesso ficaram conhecidos? Teria São Gabriel emudecido, São Rafael deposto seu bastão e seu alforje, e São Miguel embainhado sua espada? Dir-me-eis que não, e que tendes experiência do seu socorro em vossas vidas. Dir-vos-ei que estais certos e que a razão está no que podem ou não podem fazer os anjos.
Não têm os anjos, um privilégio igual ao que têm as almas humanas, pois estas podem trabalhar pela salvação de suas irmãs. Ao contrário, segundo os escritos sagrados, todo o poder dado às milícias celestes foi antes para a luta entre si – os anjos bons e humildes contra os orgulhosos e maus. Por isso, desde os mais antigos tempos, os anjos e arcanjos, a serviço da Trindade Santíssima – Pai, Filho e Espírito Santo –, somente tiveram por objeto de socorro e salvação os seres humanos, os anjos bons contra os maus que tramam a perdição dos homens.
São Miguel serve ao Pai:
São Miguel, que significa em hebraico “quem é igual a Deus?”, ao contrário de Satanás, não se acha igual com Deus. Conta São Judas em sua epístola que, quando discutia com o demônio, o Arcanjo não se atreveu a proferir uma sentença contra ele, mas disse-lhe: “Que o Senhor te repreenda” (Jd 1,9). São Miguel é o defensor do direito de Deus, e de tudo em que o Senhor é uma presença.
São Rafael serve ao Filho:
No livro do profeta Tobias, o qual por expressa vontade de São Rafael foi escrito, que coisa recomenda o Arcanjo em sua exortação, que não seja a antecipação das palavras de Cristo Jesus, tendo ele próprio feito milagres que prenunciavam o Salvador?
São Gabriel serve ao Espírito Santo!
E quando o arcanjo Gabriel anuncia a Maria: “O Espírito Santo descerá sobre ti e a força do Altíssimo te envolverá com sua sombra”, não cabe dúvida que serve à terceira Pessoa.
Que fazem, pois, as almas dos justos que chegam ao céu?
Enquanto houver aqui os horrores, enquanto houver aqui crimes e guerras, estejais certos de que nem as almas, nem os anjos, voltarão as costas para esse nosso mundo aflito. E assim, não pode ser outro o labor das almas celestes e dos anjos senão socorrer as almas dos vivos, levar-lhes justiça, consolo e inspiração para o bem.
Chegadas ao céu, com certeza, as almas haverão de filiar-se às hostes angélicas conforme sua vocação de servir a uma das Pessoas da Trindade: as almas daqueles que na Terra trabalham pela justiça e firmeza do juízo moral ingressarão na ordem de São Miguel; as daqueles que, na Terra, se apiedam e socorrem ingressarão nas hostes de São Rafael, e as daqueles que pregam e consolam, nas hostes de São Gabriel.
O texto logo me pareceu que era incompatível com o estilo de Vieira, que inclusive não teria deixado de inserir no sermão algumas frases latinas – e mais: a escrita não era aquela sua grafia miúda de que eu me recordava ter visto nas suas justificativas apresentadas ao Santo Oficio. Passei a aguardar que a final prova grafológica confirmasse essa minha opinião.
Em Lisboa, após as cópias serem examinadas por uma meia dúzia de pesquisadores convidados pela Embaixada para um coquetel, ao final de um rápido seminário sobre as obras de Vieira, o resultado foi taxativo: nem a caligrafia nem o estilo dos rascunhos eram do grande orador sacro. Tratava-se de anotações esquecidas dentro da pasta de Clemente X por alguém na mesma época ou, posteriormente, por algum pesquisador do século XVIII. Quanto aos papéis da Rainha, peritos suecos constataram que eram cópias antigas de documentos autênticos já catalogados. Como haviam ido parar na pasta do papa Clemente é que se deveria investigar – com certeza por esquecimento havido, do mesmo pesquisador que, distraído, perdera entre eles sua nota sobre as almas e os arcanjos.
Rubem Queiroz Cobra
Nota: O suposto sermão de Vieira é um texto criado pelo autor desta narrativa.
Este conto está no livro de R. Q. Cobra AS FILHAS ADOTIVAS. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85-905519-1-1.
Página lançada em 05-01-2004
Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Sermão Perdido do Padre Vieira. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2004.