Contos: Mini Aportes Temáticos

Hoje: 20-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

São histórias que o autor insere no conto, com várias finalidades, em geral para falar sobre um dos personagens, ou sobre o passado histórico de um local, etc. Essas inserções devem ser breves. Se forem longas, tornar-se-ão sub-temas, e estarão a fazer concorrência com a história principal. Por isso chamo essas inserções de “Mini Aportes Temáticos”. Eles são ótimos para estimular a imaginação   do leitor em relação a um cenário, reforçar emoções, ou passar ao leitor uma ideia do que ele pode esperar de um personagem no desenvolvimento do enredo, e assim valorizar a narrativa.

Não confundir com afigura de linguagem chamada “comparação” ou “símile”. O mini aporte temático não é uma simples oração subordinada.

Equivale ao chamado sub-tema de um romance, quando um personagem que aparece na história é descrito em detalhes, mostrada a origem de suas relações com os demais é informada com pormenores, ou um evento é particularizado na narrativa como uma explicação da razão de ser

Abaixo um exemplo de subtema em um romance:

“O mundo inteiro estava mudado – não havia igreja em parte alguma, e nenhum outro padre, exceto padre José, o proscrito, na capital. Ficou deitado, ouvindo a respiração pesada do mestiço, e imaginou por que não seguira o mesmo caminho que padre José e se sujeitara às leis. Eu era ambicioso demais, pensou, foi isso. Talvez padre José fosse o melhor dos dois – ele era tão humilde que estava pronto a aceitar qualquer tipo de zombaria: nas épocas melhores, ele nunca se considerara digno do sacerdócio. Houvera, uma vez, uma conferência do clero na capital, nos tempos felizes do antigo governador, e ele se lembrava de padre José sempre sentado na última fila, sem abrir a boca. Não que ele fosse super escrupuloso, como alguns padres mais intelectuais: ele tinha, simplesmente, uma imensa noção de Deus. Na elevação da hóstia, podia-se ver suas mãos tremendo – ele não era como São Tomé, que teve de enfiar as mãos nas feridas de Jesus para acreditar: as feridas sangravam para ele em todos os altares. Uma vez padre José lhe dissera, num impulso de confiança:

—Todas as vezes … eu sinto tanto medo. – Seu pai fora um peão.

Mas seu caso era diferente: ele tinha ambição. Não era mais intelectual que padre José, mas seu pai era um comerciante, e ele sabia o valor de um saldo de 22 pesos e como lidar com hipotecas. Não se contentava em passar a vida inteira sendo o padre de uma pequena paróquia. Suas ambições voltaram-lhe à mente agora como uma coisa um tanto cômica, e ele deu uma risada meio inesperada. O mestiço abriu os olhos:” (Greene, (1940) 2008, p. 126-127)

Pela extensão que um sub tema tem em um romance, ele é impossível de ser desenvolvido em um conto, por dificultar o encurtamento coerente da história. Criaria uma estrutura desarmônica, Porém podemos incluir no conto, em um ponto estratégico, algum comentário resumido para clarear o caráter de um personagem, ou explicar, de maneira breve, suas ambições, sem quebrar a estrutura dividindo a atenção do leitor.

Para deixar ainda mais claro o que chamo “Mini Aporte Temático”, apresento um exemplo de como um deles poderia ser, inversamente, transformado em “subtema”.

É importante ressaltar que o emprego deste recurso sintáxico que ajuda a abreviar, pode atrasar a redação, prolongando-a, caso qualquer seja utilizado em demasia.

Exemplos buscados na obra do escritor inglês Graham Greene (*):

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Pensamento filosófico:

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Isso era outro mistério: às vezes parecia-lhe que os pecados veniais – impaciência, uma mentira sem importância, orgulho, uma oportunidade negligenciada – o afastavam da graça mais completamente que os piores pecados. (Greene, op. cit., p. 185)

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O corpo:

Ele tentou mover os pés – a cãibra havia passado, mas eles estavam praticamente sem vida: todas as sensações haviam passado. (Greene, op. cit., p. 169)

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O confessionário ensina a reconhecer a forma de uma voz: o lábio pendurado de um queixo fraco e a falsa candura de olhos francos demais. (Greene, op. cit., p. 177).

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Animais.

O tempo passou muito devagar; até a fumaça do tiro pareceu permanecer no ar por um tempo incomum. Alguns porcos saíram roncando de dentro de uma cabana e um peru caminhou com dignidade maligna para o centro do círculo, estofando as penas empoeiradas e sacudindo o longo papo cor-de-rosa. (Greene, op. cit., p. 100).

…..

A menina continuava com a mão na bota dele. Ele baixou os olhos para ela com um afeto sinistro. Disse com convicção: — Esta criança vale mais do que o papa em Roma. – Os policiais estavam apoiados nas suas armas; um deles bocejou; o peru voltou, vaiando, para a cabana. (Greene, op. cit., p. 101)

…..

Lá em cima, no céu, um urubu observava; daquela altura eles deviam parecer […] (Greene, op. cit., p. 103)

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Um sentimento coletivo.

— Não – disse ele debilmente. — Eu não tenho nada. – E pôde sentir a inimizade fumegando à sua volta.

(Greene, op. cit., p. 162)


(*) Graham Greene, em O Poder e a Glória (1940), tradução de Leia Viveiros de Castro. Ed. Bestbolso, Rio, 2008

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 21-11-2012.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Contos: Mini Aportes Temáticos. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2004.