O Hipnoterapeuta

Hoje: 29-03-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Era hipnoterapeuta de renome procurado por importantes clínicas para consulta em casos de tratamento, e até pela polícia, quando a solução de um caso dependia de reavivar a memória de uma testemunha. Era talentoso nesse mister, ganhava bem em troca de seus serviços e sua renda lhe permitia ir para a praia e alugar um chalé para ficar todo o verão. Também fazia demonstrações pagas da arte de hipnotizar, assim como, ministrava cursos extras em colégios e universidades, ninguém, nem mesmo ele, sabia por que tinha tanto talento. Talvez porque fosse muito casmurro, tinha pouco sucesso com as mulheres, não era casado e não ficava muito tempo com uma namorada.

Parecia que de algum modo ele as assustava, mas de repente o aplicado hipnoterapeuta começou a desconfiar de si mesmo e recear pelo seu futuro. Havia, durante a noite, acordado na cozinha sem que se lembrasse de ter se levantado e caminhado até lá. O que fazia ele com uma xícara na mão e a lata de biscoitos na outra? Sem dúvidas, acordara com o forte ruído da lata ao cair da sua mão, espalhando biscoitos pelo chão. A água para o chá fervia na chaleira, estavam acesas não apenas a luz da casa, mas também a luz da varanda, e a porta da cozinha destrancada como se ele pretendesse tomar o chá em sua poltrona predileto junto ao vaso de jasmins floridos. “Eu fui hipnotizado ou me tornei um sonâmbulo?”. Preparou-se para o trabalho.

Havia ainda poucas pessoas nas ruas, mas os pombos já catavam com avidez migalhas de alimentos. Um bonde puxando o seu reboque fez a volta na praça e parou onde o hipnoterapeuta estava em pé. Alguns estudantes entraram no carro, dois escolheram a janela, por um impulso o hipnoterapeuta também entrou e procurou um assento junto à janela do lado da calçada. A composição se movimentou e seguiu parando nos diversos pontos.

O hipnoterapeuta pôde ver o dia começar ao longo do trajeto. Uma padaria servindo café com bolo; lavanderia recebendo os primeiros clientes; e cada vez mais pedestres nas calçadas. Desceu no ponto próximo a delegacia e caminhou até o prédio e era ainda um pouco cedo.

Um dos agentes de investigação, o que mais simpatia lhe havia demonstrado, desde que assinara o contrato com o delegado para usar a hipnose na tentativa de recuperar a memória de um casal, testemunha de um crime.

 Aceitou o café oferecido pelo agente e na mesa da lanchonete, ouviu dele, detalhes sobre o crime.

– Um agiota foi esfaqueado e morto por um casal que lhe devia grossa soma de dinheiro – capital e jurus. A falta de perícia no uso da faca fez com que as feridas ficassem disformes, o sangue derramado também borrifara móveis e paredes da cena do crime.

– Mas há provas?

– Sim, parece que houve uma discussão sobre pagamento de uma dívida. Um recibo foi esquecido sobre a mesa, tem as assinaturas do casal.

– Devia haver forca para essa gente, disse o auxiliar legista.

Possivelmente o auxiliar legista havia sofrido nas mãos de algum agiota, para que destilasse tanto ódio em suas palavras. O delegado notou a presença do hipnoterapeuta em meios aos técnicos na cena do crime, havia muito trabalho a fazer ali; muitas fotos, acata de coisas espalhadas com a briga do casal antes da perpetuação do crime, e documentos da vida financeira do casal que ajudariam nas investigações. Tudo deveria ser catado e catalogado e postos em sacos destinados a coletas de indícios.

Aquele dia o hipnoterapeuta concluiu com êxito o seu trabalho. O resultado da seção de hipnose de um marido acusado erradamente de ser o assassino de sua esposa permitiram que ele se lembrasse de que havia outra pessoa na casa e fizesse o retrato falado do homem de qual antes não tinha lembrança. Esse sucesso aumentou ainda mais a admiração que tinha por ele o auxiliar de legista e contribuiu para aumento da sua fama. Mas teria que aguardar por nova tarefa para voltar à delegacia, onde agora contava com um amigo dos raros que tivera até então em sua vida. Ensaiava encomendar um jantar para o amigo e sua família – mulher e casal de filhos — em seu bonito e amplo apartamento de solteirão. Quando se decidiu e de fato convidou, o convite foi aceito com prazer pelo assistente legista que apenas objetou que gostaria que o encontro se desse no restaurante Porteira Feliz, onde os filhos gostavam de ir em jantares. devido a um grande pátio gramado e iluminado por holofotes.

Enquanto o casal e hipnoterapeuta jantavam os meninos foram montar nos dois pôneis e cavalgar puxados pelo Boy do restaurante. Havia um número razoável de fregueses, parte no interior e parte no terraço do restaurante. A esposa do auxiliar legista se esforçava para encontrar uma típica conversa que despertasse o interesse do hipnoterapeuta, mas quase todo o tempo ele tinha um olhar vago para o pátio, parecendo olhar por cima da cabeça da mulher.

Depois de deixar as crianças aos cuidados do boy, o auxiliar veio e, preenchidas as comandas pelo garçom, pôs-se a dar notícias da delegacia. Tinha o que contar, mas o dono do Portaria Feliz fez sua entrada sorridente e glamorosa no salão e começou a cumprimentar seus clientes em cada mesa.  Fregueses antigos eram os que caprichavam nos cumprimentos, um pouco alongados, para demonstrar aos demais o quanto eram amigos do ricaço.

– Vou ao banheiro e depois ao pátio. Não quero vê-lo cumprimentar em nossa mesa. Isto é que atrapalha, porque o restaurante é perfeito, mas o dono é um contraventor e consta que se livrou da cadeia por assassinato de um devedor e foi salvo por sua influência social. Todo mundo quer ser seu amigo, devido a sua fortuna e seu charme de milionário. Enriqueceu como agiota que mandou executar devedores, a mais das vezes pessoas pobres que acabavam presas a débitos impagáveis. Era o maior bicheiro da cidade, mas nada é tão maligno quanto a agiotagem. É como eu lhe falei na delegacia, agiotas deviam ser fuzilados sem dó nem piedade! – Disse o auxiliar legista.

Ao fim do jantar as crianças deixaram os póneis e vieram famintas, o hipnoterapeuta avaliava no íntimo se teria sido um bom jantar, mas endureceu um pouco mais suas feições condenando-se porque, sem meios de comparação por falta de frequentar jantares, acreditou que o seu jantar não fora nenhum sucesso. Tentando fazer qualquer coisa que reparasse a situação, pediu dois belos sanduiches e refrigerantes para as crianças. Maravilhadas e saltitantes pediram para ir comer junto do curral dos pôneis. A mãe consentiu e o hipnoterapeuta se dispôs a ir vigiá-los. Passada a ameaça de encontrar o proprietário, o auxiliar regressou ao terraço. Não vendo ninguém à mesa que ocupavam, foi à beira do terraço. A esta hora, totalmente lotado e incrivelmente barulhento, supondo que a mulher e o amigo estivessem no pátio gramado, na companhia das crianças. Assustou-se e o susto foi grande. Nem as crianças nem a mãe delas estavam no gramado. Voltou ao interior do restaurante e olhou novamente em todas as direções.  Sentiu uma palmadinha nas costas e quase vomitou; era o dono da Porteira Feliz que o puxava para um aperto de mão. Desvencilhou-se ligeiro do bicheiro e correu confuso para o terraço. Então acalmou-se e respirou fundo deixando em seguida escapar um sopro calmante como se tivesse levado um bafo de vento morno(?): viu primeiro o amigo e logo atrás os dois pôneis montados pelas crianças, puxados por ele, dobrando a esquina a caminhar devagar vindos da lateral da casa. Deixaram os animais no cercado e entraram na varanda barulhenta quando os garçons vinham em fila cada um levando na palma da mão suspensa um dos pratos preparados na cozinha. Passaram rapidamente pelo banheiro e vieram alegres e rápidos para a refeição a base de batatas fritas. Ao final da refeição não dispensaram um pote de sorvete cada um.

Apesar do jantar ter transcorrido como um encontro prazeroso, o casal convidado não experimentara real tranquilidade e se desculparam por antecipar um pouco o fim do encontro. A esposa do auxiliar legista estava cansada com suas tentativas de trazer um sorriso ao rosto do anfitrião, sempre sério e mostrando um certo desconforto. Apenas agradeceu o jantar enquanto o auxiliar prometia que no dia seguinte conversariam, se ele pudesse passar pela delegacia.

O hipnoterapeuta acordou pouco depois do meio-dia. Porém, como ainda não havia compromissos de novos trabalhos, com a polícia ou algum hospital, não o incomodou iniciar tão tarde os rituais que deveriam ser matutinos. Trocou o café para comer no restaurante quase fronteiro ao seu prédio, uma torta de carne e requeijão cremoso. A televisão acima do caixa mostrava cenas da delegacia com dois repórteres a retransmitir opinião de oficiais da força pública sobre o acontecido aquela madrugada, um assalto ao restaurante Porteira Feliz em que o dono daquele famoso restaurante, traficante e popular bicheiro, fora morto. era popular em toda a cidade por haver mandado construir um hospital para os pobres da cidade. Ele fora encontrado morto com um tiro na testa enquanto dormia, muito provavelmente por um de seus empregados. O Hipnoterapeuta pagou a conta sem ver o que a televisão mostrava e dirigiu-se para a saída da lanchonete. Mas recuou precipitadamente alguns passos quando viu um carro de polícia parado frente à entrada do seu prédio. Dele saltavam naquele instante dois militares e o auxiliar legista – seu amigo. Entraram no edifício com o porte de quem tem pressa em cumprir uma missão. Não havia dúvida de que, não o encontrando no apartamento, o procurariam na lanchonete ou no restaurante próximo.

Um bonde que vinha devagar arrastando o seu reboque parou atendendo o seu aceno, embora já houvesse passado alguns metros adiante da sinalização de parada. Era a melhor opção de fuga. Dentro do bonde havia junto ao teto, uma faixa de anúncio. Destacava-se uma propaganda de Tody com um desenho colorido do pote do produto com uma mãe oferecendo a bebida a um garoto, e um letreiro exaltando o valor do produto para a saúde das crianças. Duas ou três pessoas ocupavam bancos no início e no meio do veículo. O bonde tinha seu terminal bem longe, na circular de uma praça a poucos metros da Avenida da Praia. Quando desceu do coletivo o Hipnoterapeuta olhou procurando qual caminho seguir, quando se viu confrontado com o condutor do bonde que lhe cobrou a passagem que havia esquecido de pagar. Despois de desvencilhar do condutor, seguiu a passos rápidos a calçada da praça por entres os pedestres que caminhavam em todas as direções. Totalmente confuso, não se deteve em tempo quando chegou a esquina e se meteu em meio a um grupo de ciclistas que se viram obrigados a frear, atravessou por entre eles e entre os carros ouvindo todo tipo de palavrões e dos carros que buzinavam nervosamente por que também se viram obrigados a deter-se, mas retrocedeu quando viu um policial fardado observando a desordem que ele provocava no transito. Procurou oculta-se entre os transeuntes e subiu avenida, e novo buzinaço acompanhado de impropérios ao interromper o transito dos veículos para atravessar a fila dos que transitavam pela pista, seguiu pela calçada que limitava a orla. Estava certo de que matara o bicheiro. Sabia que aquele fora mais um surto do mal que o atingira, um sonambulismo em que performava um comportamento determinado seguindo uma ordem hipnótica que, inexplicavelmente, ele podia executar com a obrigação de, depois de acordar, esquecer-se de tudo. Ele certamente saíra em seu carro de madrugada e executara com um tiro, por ordem do auxiliar legista, o desonesto e pranteado bicheiro.

Pensou em suicidar-se. Quando todos soubessem que ele era o assassino, culpado por matar o ilustre e pranteado bicheiro, ele estaria liquidado profissionalmente, e a hipnose se tornaria proibida. O marulhar das ondas cresceu tornando-se em rugidos furiosos. Pareciam chamados cada vez mais imperiosos para que mergulhasse no mar. Onde a crista das ondas cresceu, por estarem entrapadas em um funil de rochas, a ordem para que pulasse na espuma branca tornou-se irresistível e ele saltou. Bateu com a cabeça em um granito lavado pela onda, e seu corpo foi arrastado para o mar pelas fortes correntezas entre as rochas.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 07-12-2021.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O hipnoterapeuta. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2021.