O Herege de Toulon

Hoje: 28-03-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

O Barão mandara iluminar o palácio com trezentos candelabros de sete velas. Tochas ardiam na escada à entrada e nos caminhos, por entre o arvoredo do jardim. Oferecia aquela festa como celebração da despedida do seu filho único – que por devoção de sua mãe, fora batizado Francisco. O jovem viajaria para Paris nos próximos dias. Segundo o mais caro desejo de sua piedosa mãe, Francisco tomaria o hábito de São Francisco e se dedicaria à caridade para com os pobres. O pai apostava no oposto. Sem ter tido tempo para perceber a sutil influência da religiosidade da mulher sobre a criança, acreditava que o natural ardor juvenil era, de fato, o que movia o filho àquela escolha; a vida franciscana se lhe apresentava como uma aventura heroica! Uma cruzada contra os turcos talvez o atraísse mais, se houvesse uma. Com a experiência que tinha da vida, o pai calculava que, conhecendo na Capital o esplendor de uma vida abastada em meio a amigos, filósofos, príncipes e princesas, e ricos homens de negócio, o jovem chegaria a uma visão mais realista e prática do mundo. Com esse objetivo havia exigido que, antes dos votos, Francisco frequentasse a universidade de Paris. Um dia estaria de volta à casa – que não voltasse endividado, ele pedia a Deus – para continuar os negócios paternos, tinha certeza!

No salão onde se reuniam os convidados comiam e conversavam representantes dos três Estados do Reino: a Igreja, a nobreza e o povo. A Igreja, representada pelo Arcebispo – o Archévèque de Toulon – com sua sotaina púrpura, tendo sobre a calva um solidéu da mesma cor; a nobreza, encarnada pelo Barão anfitrião e vários outros nobres parentes e amigos da família; e o terceiro Estado, a burguesia: empresários, comerciantes e armadores que haviam enriquecido, tal como o Barão, realizando negócios com a Corte na ampliação do porto de Toulon. Os homens usavam perucas cacheadas, casacas festonadas com faixas em azul e vermelho vivo, bordadas com fio de ouro, sobre finas camisas brancas fartamente rendadas no peito e nos punhos. As mulheres vestiam longos e amplos vestidos armados em iridescentes sedas, failles, cetins e chamalote – o colo nu adornado com colares de pedras verdes, diamantes ou pérolas luzidias. A atmosfera recendia a perfume da cera queimada com essências; a luz assumia um tom dourado; a música era suave e romântica, em alguns momentos ouvida acima do ruído das conversas e dos risos. Os criados serviam em uniforme de gala.

No pátio, à luz das tochas, belas caleças, tilburis, cavalos encilhados e grandes e pequenas carruagens esperavam seus donos ao fim da festa. Na cozinha , que abria para o pátio ao rés-do-chão, os cocheiros, criados e cavalariços eram servidos de pão e carne, e do vinho da torneira de uma pipa, sentados nos bancos de uma mesa longa, à luz das labaredas dos fogões.

*

Apesar de não haver muita simpatia na família para com os dois sobrinhos do Barão, eles haviam sido incluídos entre os convidados para a festa. O sobrinho mais novo, sacerdote inclinado aos prazeres e a refregas, era o poderoso Arcipreste, representante local do Tribunal do Santo Ofício, a temida Santa Inquisição. Não atendeu ao convite do tio; não compareceu, para evitar encontrar-se com o Archévèque, por dever de ofício um ultramontano, para quem a chefia da Igreja estava além dos Alpes, em Roma, e por isso malquisto pelos realistas, como ele, que desejavam que parte do poder temporal do Papa passasse ao Rei.

O sobrinho mais velho, Ardilau, Procurador da Vila, estava presente, e circulava entre os convidados sem esconder uma certa euforia vazada em excessos de cumprimentos sorridentes, abraços e beija-mãos carregados de afetação. Alegrava-o o fato de que, ao ingressar na ordem franciscana, o festejado primo Francisco, filho do rico Barão, estaria obrigado a um voto de pobreza. Como resultado desse voto, ele e o irmão se tornariam os únicos herdeiros legais do tio.

Ardilau aproximou-se de Francisco para também cumprimentá-lo pela sua partida, e o fez com ainda maior efusão que a dispensada aos demais convidados. Com base em sua própria experiência acadêmica, indagou:

— O que tem em mente para sua tese final?

Francisco se fez alerta. Conhecer as inclinações desidiosas do primo Ardilau lhe dava uma cartilha de cuidados para tratar com ele. E isto consistia em desconfiar da sua bajulação e duvidar da seriedade com que abordava certos assuntos, ao contrario das suas habituais zombarias.

— Um discurso sobre a Santa Eucaristia – respondeu Francisco.

O primo se assombrou:

— Este é um tema perigoso! – não estará se arriscando? – Ardilau havia farejado algo potencialmente útil para ser usado contra Francisco. “Debates sobre tal questão geralmente resvalavam para a heresia” – pensou.

Não era desejo do jovem falar da sua tese naquela oportunidade. Ajudou-o a libertar-se do primo a bela e meiga Beatriz, que havia sido sua noiva. Vestida com um suntuoso vestido, a jovem se interpôs entre ambos e abraçou o ex-noivo com paixão. Apesar das muitas anáguas, apertou seu corpo contra o dele, na tentativa de senti-lo; ergueu o rosto com os olhos cheios de lágrimas, e fitou-o como um último e desesperado apelo ao seu coração. Ela já havia se acostumado à ideia amarga da entrada dele para a Ordem, mas supunha que o teria por perto, e poderia amá-lo, pois era conhecimento de todos que eles se amavam. Mas vê-lo afastar-se para a distante Paris, ela não conseguia aceitar.

Aquela súplica muda abalou Francisco, e o emudeceu também. Deixou-se abraçar por um instante. Com seus dedos, acompanhou carinhosamente as linhas harmoniosas e sedutoras do lindo rosto que se demorava em separar-se do seu, e deslizou-os entre as ondas de seus cabelos negros, presos sob a pequena tiara de prata adornada com safiras.

“Não estarei sendo um tolo?” – perguntou-se.

Com o voto de pobreza, perderia a fortuna de seus pais. Mas, de tudo, o que mais lhe custava era renunciar ao amor por aquela mulher. Mas, a vontade da Providência era clara para ele, e desejava cumpri-la com humildade e alegria! Inspirado em São Francisco, queria praticar a mais dura forma de caridade que ele conhecia: cuidar dos leprosos. Lembrado desse propósito, sua vacilação se desvaneceu com a mesma rapidez com que o havia assaltado. Desviou os olhos de Beatriz e afastou-a de si a distância de seus braços.

As amigas da noiva acercaram-se do casal, pois sentiram que deviam ampará-la. Enxugaram-lhe as lágrimas com lencinhos de renda e conduziram-na delicadamente, com palavras de consolo, para uma câmara vizinha do salão, além da escada que levava aos aposentos superiores. Francisco notou que seu rival ao amor de Beatriz seguiu por uns poucos passos, tímido e indeciso, o cortejo das mulheres, e sentou-se desacorçoado nos primeiros degraus da branca e brilhante escadaria de mármore.

Abandonado no meio do salão, Francisco logo foi cercado pelos amigos que o animaram com ditos engraçados e risadas francas e contagiantes. A um sinal deles os músicos iniciaram um xote alegre. Recuperando-se da emoção por que passara, Francisco convidou-os a se aproximarem da mesa farta, onde os criados serviam bebidas e iguarias variadas.

*

Na véspera de sua viagem para Paris, poucos dias após a memorável recepção oferecida por seus pais, Francisco foi avisado pelo criado de que o Arcipreste o aguardava no salão, e desceu para recebê-lo. Ao seu costumeiro modo arrogante, o Arcipreste disse saber que o primo preparava um escrito teológico com risco de heresia, para apresentar em Paris. Por essa razão, a declaração de fidelidade à santa fé católica, exigida para a sua admissão na universidade, ele teria que solicitá-la diretamente à Inquisição, em Toulouse, para onde já encaminhara um aviso sobre o assunto. Agira assim porque este era seu dever como autoridade da Igreja, e também para salvar o primo de complicações futuras. Porém, sugeriu:

— Se antecipar seu voto de pobreza, isto será prova suficiente de sua fidelidade aos dogmas, e neste caso eu próprio assinarei o documento que apresentará à Sorbonne. Faça isto. Temos aqui bem próximo o convento franciscano de Avignon, onde poderá fazer o seu voto.

Francisco, consternado, nada respondeu.

O Barão ficou surpreso e irado com a denuncia feita pelo sobrinho contra Francisco. Via como a perdição de seu filho ter que tratar com o cego, cruel e implacável Tribunal do Santo Ofício. O Arcipreste fez ouvidos mocos aos apelos do tio. O amigo Archévèque escreveu uma carta ao Tribunal solicitando clemência, mas disse não poder interferir, ou ele próprio seria punido. A mãe, sempre amorosa, desta vez repreendeu o filho asperamente por escrever coisas contra a Igreja, não importava o que fosse. Fez uma promessa a Santiago, de ir em peregrinação rezar em seu túmulo, se livrasse o filho de ser preso e torturado por ordem do Tribunal . Mas o piedoso Francisco via o acontecimento de um modo diferente de todos. A vontade da Providência lhe parecia ser muito clara: era que ele fosse explicar a sua tese sobre a Eucaristia diante daquela poderosa Instituição para que, aprovada, ela se tornasse um preceito de fé para todos os fieis. Esse pensamento dissipou sua tristeza.

*

Alegre e ansioso por chegar ao seu destino, Francisco seguiu em uma caleça puxada por dois magníficos animais, a caminho de Toulouse. Mas, logo no inicio da viagem, o cocheiro o fez preocupar-se. Relutante em falar com o amo sem ser interrogado, o criado foi, timidamente, deixando escapar algo que parecia haver reprimido no seu íntimo, mas que não resistia à oportunidade de manifestar. Revelou que o povo suspeitava de seus dois primos. As pessoas diziam que eles ambicionavam herdar a fortuna do Barão, e fariam qualquer coisa que pudesse favorecer os seus intentos. Que Francisco fosse deserdado ou… morto em um acidente… ou em um duelo!…

Ainda no terceiro dia da viagem o devotado condutor notou que eram seguidos por dois homens a cavalo, que se mantinham a certa distância. Desconfiado, fez o veículo seguir tão rápido quanto podiam os animais. Os cavaleiros também se apressaram. Não havia dúvida quanto às más intenções daqueles homens.“A bela viatura havia atraído a atenção de salteadores”, pensou Francisco.

A caleça era leve e o terreno irregular; a rapidez do seu deslocamento causava imprevisíveis e perigosos solavancos. Francisco mal conseguia se manter no assento. Em dado momento, uma das rodas passou em cima de uma pedra solta na estrada e o jovem passageiro foi lançado em um espinheiro na borda do caminho.

O carro continuou em disparada. Os perseguidores mascarados somente conseguiram alcançar as rédeas e deter os animais bem mais adiante. Indagaram do cocheiro pelo passageiro que ele conduzia, mas ele não lhes soube dizer em que ponto do caminho o jovem havia caído. Deixaram-no em paz e voltaram para o leste. O cocheiro procurou por Francisco ao longo do retorno, enquanto durou a luz do dia.

*

Bem próximo, alguns frades trabalhavam na construção de uma ponte sobre um fosso, e viram o que aconteceu. Passado o tropel e baixada a poeira, retiraram o corpo maltratado de Francisco do espinheiro. Amparado pelos frades, o jovem conseguiu caminhar pela encosta até a residência deles, no alto da colina. O Reitor da Casa foi chamado e mandou que o levassem a uma cela, a fim de ser medicado.

Francisco não precisava indagar sobre o trabalho dos frades. Conhecia-os pelas suas sotainas negras, um capuz preto e uma capa na qual uma cruz de Tau em tecido azul estava aplicada. Eram os antoninos, ou Ordem de Santo Antônio do Egito chamado pelos portugueses “Santo Antão”. Mantinham hospitais para tratamento do “fogo sagrado”, uma queimação que causava sofrimentos inauditos às suas vítimas.

O boticário e um cirurgião barbeiro vieram examinar o acidentado. Verificou-se que, além de algumas leves alfinetadas, nada mais sofrera.

— Confesso que odiei aqueles homens, disse Francisco a respeito dos assaltantes. — Amar o próximo!… Este é um mandamento impossível de ser obedecido! Nascemos para sermos inimigos mortais uns dos outros. Até mesmo os que querem amar o próximo brigam entre si a respeito do melhor modo de fazê-lo. Somente uma total e absoluta covardia – “volte-lhe a outra face” – poderá trazer completa paz! – Tentando suportar as dores com bom humor, sem qualquer gemido, ponderou: — Creio que o próprio São Francisco não tenha conseguido cumprir esse mandamento integralmente, e estaria até hoje esperando à porta do céu, não fosse a misericórdia divina.

O Reitor evitou comentar o que ouviu. O próprio Cristo havia “voltado a outra face”, e não por covardia, pensou.

Francisco falou dos seus planos e contou-lhes como, por suspeita de heresia em suas ideias, sua diocese lhe havia negado a declaração exigida pela universidade em Paris, obrigando-o a ir buscá-la no Tribunal em Toulouse. O responsável pela recusa fora seu primo Arcipreste, sobre quem – lembrou-se de dizer – o cocheiro o havia alertado, repetindo o que o povo dizia dele e do irmão Ardilau: queriam ambos herdar a fortuna do Barão seu pai, tio deles. Narrou a perseguição na estrada até onde caíra do carro. Porém, ele ainda acreditava que fora um assalto como os que aconteciam naquela região, infestada de mouros e armênios que entravam pelos portos de Toulon e Marselha.

Era, sem dúvida, um jovem ingênuo, pensou o Reitor. No entanto, quanto ele poderia ser útil ao seu hospital!… Talvez pudesse, com a sua fortuna, ajudá-lo a ampliar a enfermaria! Porém, como fazer para que deixasse sua preferência pelos franciscanos e se tornasse um antonino? Haveria uma erva milagrosa para tal propósito?

— Descanse, disse o Reitor. Ainda o vejo chocado com o que lhe aconteceu. Asseguro-lhe a nossa hospitalidade e amor fraterno, em nome de Jesus Cristo.

*

Na manhã seguinte, da pequena janela vertical de sua cela não viu senão um terreno com plantações de ervas. Identificou várias que conhecia de alguns jardins, como a grama-de-ponta, empregada contra as inflamações, principalmente das vias urinárias; as verônicas, da qual os boticários faziam xaropes com mel para curar a tosse; a miraculosa genciana, boa para tantos males… a papoula… e touceiras de mandrágora, uma erva alucinógena!

Vencido pela curiosidade, decidiu sair da cela e caminhar até o átrio da entrada principal. Dava para o átrio a porta de uma capela, aberta de par em em par. Em seu interior sombrio, pouco distante do altar, estava suspenso um grande tapete de fundo cinza esmaecido, representando o martírio de São Kirico, a sua cabeça serrada por dois algozes. No lado oposto, um grande quadro afixado à parede – não menos lúgubre – retratava um paciente, sentado em uma cadeira, inconsciente, um aprendiz segurando-lhe a perna atacada pelo fogo de Santo Antônio, enquanto o cirurgião procedia à sua amputação, ladeados por frades ostentando em seus mantos a cruz de Tau. Quem reunira aquelas duas peças na capela tivera, talvez, a ideia singela de mostrar como a serra podia ser usada no esqueleto humano para o bem ou para o mal.

A visão daquelas telas fez desaparecer em Francisco o interesse em prosseguir sua exploração. Chegou a suar e sentir que lhe faltava ar. De volta ao átrio, viu um dos frades passar por uma porta, deixando-a cuidadosamente semi-aberta, como um convite para que fosse seguido; era a passagem para uma escada que descia para os porões. Do fundo subia o som de vozes de mistura com outros ruídos e murmúrios. Incapaz de resistir à curiosidade reacendida apesar do medo, Francisco desceu até à entrada de um salão subterrâneo, sem dúvida uma ampla enfermaria com muitos pacientes,às vezes três ou quatro em uma mesma cama larga de madeira.

O boticário e o cirurgião-barbeiro inspecionavam as feridas de uma mulher. Eram auxiliados por duas jovens que usavam toucas e vestidos brancos. Desprovidas das pesadas anáguas, elas eram ao mesmo tempo esguias e ágeis – tão recatadamente vestidas que poderiam ser freiras vestidas com roupas laicas.

Um grande número de frades estava entregue a uma enorme faina, cuidando dos enfermos, limpando-os, lavando seus pés, examinando suas cabeleiras pra detectar piolhos, trocando cataplasmas, ministrando beberagens. Alguns tratamentos eram dolorosos, e muitos doentes não conseguiam reprimir os gritos de dor. Outros rezavam em voz alta, ou bradavam por um atendimento urgente.

Angustiado com todo aquele cenário de desespero, ouvindo gritos e choros, o ar pesado, carregado do odor dos unguentos e do cheiro de urina, o excesso de trabalho dos frades, tudo tornou-se insuportável para Francisco. Sentiu que as forças lhe faltavam. Uma das enfermeiras percebeu sua palidez e veio em sua direção, mas ele caiu sem sentidos, antes que ela o socorresse.

*

Aquela fora, para o Reitor, uma oportunidade inesperada para colocar em prática o seu plano. Sentou-se em um pequeno banco de madeira junto ao catre onde, deitado, Francisco acordou. Vendo que ele havia recobrado os sentidos, o Reitor lhe ofereceu uma bebida em um cálice de estanho.

Ante o olhar interrogador que Francisco alternou para o cálice, o Reitor explicou:

— É o saint vinage. Esse vinho teve contacto com as relíquias de Santo Antão e a ele adicionamos folhas conforme a finalidade com que será tomado. Você se fortificará com esta santa bebida.

Erguendo-se um pouco no leito, Francisco provou a bebida com cautela. Lembrava um vinho ordinário do vale do Ródano, pensou. – No líquido flutuavam fragmentos minúsculos de alguma erva insolúvel, talvez com poderes relaxantes.

O Reitor lhe recomendou que procurasse dormir, e permaneceu sentado quieto no banquinho, observando-o, como se aguardasse os efeitos da bebida.

Francisco mergulhou em um sono profundo parecendo-lhe, porém, que se mantinha esperto, e seu pensamento estava ativo e rápido. Discutiu consigo mesmo sobre a caridade, como se parte do seu eu acordado argumentasse com parte do seu eu dormindo.

“Ela se pratica em níveis ligeiros e em níveis mais duros. A menor é a que consiste em lançar uma moeda no chapéu de um mendigo. Já é um pouquinho maior quando se perde tempo ajudando um cego a atravessar uma ponte, ou um riacho. Aumenta de valor quando se dá pão e uma tigela de sopa. E assim vai em aumento…”

“Eu pensava que cuidar de leprosos poderia ser a mais excelsa de todas as formas de caridade” – disse para si no sonho. “Mas cuidar daqueles seres que vi na enfermaria, desesperados de dor e com toda sorte de necessidades!… Comparada com a obra daqueles frades, cuidar de leprosos era como apenas atirar moedas no chapéu de um mendigo… Nunca um leproso fez que eu desmaiasse!…”

“Poderá destinar a herança que lhe cabe, para ajudar os frades antoninos a abrir novas casas de cura e repouso” – disse a voz.

Como último pensamento naquele debate onírico, concluiu. “Sem dúvida foi a mão da Providência que guiou todos esses fatos e todos os meus passos!”

*

Francisco acordou suado, assustado, mas com a certeza de que, se queria de fato vencer o maior dos desafios, como havia desejado antes, ali era o seu lugar. O Reitor não estava mais na cela. Porém logo entrou um frade que lhe veio trazer uma bandeja de madeira com pão e carne para comer, além de uma botija com vinho.

Enquanto passava os olhos pela comida, sentindo-se inapetente e um pouco enjoado, Francisco perguntou ao frade:

—São muitos os doentes neste hospital?

—São poucos; faltam acomodações. Este é um antigo castelo rodeado por um fosso. A enfermaria é o que foi um dia um salão de armas. O Reitor tem feito tudo ao seu alcance para conseguir o dinheiro necessário para ampliá-la. Precisamos de melhor alojamento para as freiras. Elas cuidam das senhoras e das meninas vítimas do fogo sagrado. Hoje pela manhã chegou uma mulher trazida de setecentas milhas, escondida em um saco.

—Uma viagem extremamente sofrida e humilhante, condoeu-se Francisco, ainda sem tocar a comida. O frade se perguntava se devia comunicar ao Reitor que o jovem não queria comer. Mas continuou a falar da doente.

— A mulher terá suas feridas curadas – disse. — As freiras de São José são muito capazes. O Reitor foi a Puy (*) falar com o Archévêque, Seigneur de Maupas, e voltou com sete freiras. Mas ficaram conosco somente três. As outras não se acostumaram e desistiram.
— As freiras de São José?! – exclamou Francisco com um júbilo súbito, parecendo que só então despertava completamente do sono agitado que experimentara. — Foram as primeiras irmãs a não se enclausurarem e a usarem roupas leigas para trabalhar junto aos necessitados! A ordem fundada por Père Médaille!…

Francisco era tão fascinado pelo mistério da Eucaristia quanto fora o padre Jean Pierre Médaille. Na tese que preparava havia tentado conciliar suas ideias com as de Médaile, contidas em seu livro Lettre Eucharistique. Ainda trabalhava sobre a obra daquele jesuíta. Maravilhado, cheio de felicidade, pensou o quanto a Providência era sábia, Tornando-se um antonino, trabalharia irmanado com as freiras que ele tanto admirava! – Numa fração de tempo devorou toda a comida que o frade lhe trouxera.

*

Para surpresa dos frades, na manhã seguinte Francisco já estava a ajudá-los na limpeza das celas, no banho dos doentes, no tratamento de suas feridas e em aprender sobre o cultivo e o uso das ervas, e a fabricação dos unguentos medicinais. Com uma maturidade que surpreendeu aos frades, consolava e animava os doentes mais graves, e se alegrava com os progressos da cura dos mais afortunados. Escreveu ao pai, sem revelar onde se encontrava, para lhe explicar o que acontecera e pedir-lhe que o desculpasse junto ao superior franciscano que o aguardava em Paris. Ao jantar, foi convidado a sentar-se entre os frades. O Reitor comunicou a grande nova: o hospede havia decidido juntar-se a eles na caridade dos hospitaleiros.

Serenadas as manifestações de júbilo, o Reitor, dirigindo-se a Francisco, disse, com um acento sugestivo, que era quase uma leve súplica:
— Necessitamos de um cirurgião. Contávamos com um que hoje está imprestável. Ultimamente passou a beber e suas mãos perderam a firmeza. Ele diz sentir falta de uma esposa que cuidasse dele.– Se você ainda desejar ir a Paris, como pretendia, poderá estudar cirurgia e retornar o cirurgião de que necessitamos. Mas, por favor, aconselho-o a que volte casado!

O conselho dado pelo Reitor suscitou o riso dos frades. Mudou então de assunto. Garantiu que a suspeita de heresia levantada contra Francisco não podia ter fundamento e não passava de um artifício para colocá-lo na estrada como alvo fácil de matadores. Estava decidido a ir, ele próprio explicar ao Inquisidor em Toulouse toda a trama que fora armada, e obter a licença para a matrícula do jovem em Paris. Mas todos concordaram que Francisco deveria continuar escondido na Casa enquanto não tivessem certeza de que não corria mais perigo.

A vontade da Providência contrariava claramente os planos que Francisco aceitara seguir, pensando obedecê-la. Agora lhe era pedido que estudasse Medicina e se tornasse médico, e fora aconselhado a se casar!

*

Na estalagem pobre e suja, o Reitor foi acomodado em um quartinho dos fundos do terceiro andar, que dava para um pátio de onde subia um mal odor proveniente de uma fossa mal coberta, na qual os hóspedes vertiam o conteúdo dos seus urinóis. Ele aspergiu o leito com uma essência contra insetos, banhou-se e desceu para jantar. O estalajadeiro e sua mulher, de cabelos desgrenhados e roupas muito surradas, eram dois tipos bem de acordo com o estilo miserável do lugar.

No dia seguinte, ao chegar ao palácio do Inquisidor, este mandou o seu secretário espanhol trazer-lhe a carta de suspeição referente a Francisco. Intrigado com o fato de não ter diante de si um jovem, como dizia o processo, mas em vez disso um homem maduro, o inquisidor perguntou ao Reitor:

— Você é o próprio réu?

— Vim como seu representante, solicitar a declaração de conduta de que ele necessita para apresentação à Universidade.

— Vejamos o processo – disse o inquisidor. O réu conhece de que é acusado?

— O réu não faz ideia, Excelência.
O Reitor sabia qual a prática usual dos tribunais. Buscavam uma confissão ou recorriam a acusadores, denunciadores, e às torturas para obrigar os réus a confessarem culpas que desconheciam ter. Porém o inquisidor quebrou essa regra, e revelou.

— No processo o Arcipreste diz ter ordenado uma busca nos aposentos do rapaz, e encontrou anotações para uma tese que diz respeito a “um aspecto particular da Eucaristia e não à sua essência: algo que ela significa a mais de tudo que já foi dito a seu respeito”. As anotações diziam ainda: “não fosse por continuar presente entre os homens na Eucaristia, Cristo seria apenas uma figura histórica como Moisés”.

O Reitor suava muito. Francisco não lhe havia falado dessa tese. Mas certamente não sabia que fora espionado.

— Até esse ponto, não encontro nenhum desvio da doutrina, disse o Inquisidor, para alívio do Reitor. — Mas o que se segue está errado.

O Reitor voltou a alarmar-se um pouco.

— As notas dizem: “Havia uma necessidade inescapável de que a Eucaristia fosse instituída, para que Cristo se tornasse atemporal, porque esta era uma exigência da sua divindade. Sua presença permanente entre os homens, no entanto, não poderia ser ostensiva, o que tornaria a fé, bem como todo o universo, dispensáveis. A Eucaristia era a única solução para essa necessidade.”

O inquisidor indagou curioso:

— Por que uma “necessidade”? Isto é um desacerto. A instituição da Eucaristia foi antes de tudo um ato de amor aos homens. Considerá-la obrigatória ou necessária como pensa o réu eliminaria seu caráter de ato de amor e humildade do Filho de Deus.

Com certo ar de enfado, o inquisidor deu sua apreciação final:

— Na verdade o que esse jovem diz não fere nenhum artigo de fé. Além do mais, este tribunal tem seguido a linha de apenas examinar opiniões publicadas em livros e jornais. Não precisamos arrancar as unhas dos acusados para extrair-lhes confissões, como fazem os tribunais do Santo Ofício de Portugal e da Espanha, se as suas tolices já estão publicadas. Nem o Arcipreste, nem o Archévèque de Toulon me enviou uma publicação de autoria do réu.

Fechando a pasta de couro do processo, concluiu:
— Venha amanhã procurar com meu secretário a certidão de que precisa. Considero o caso encerrado.

*

Enquanto o Reitor acertava as despesas com o estalajadeiro, dois homens, cada qual em seu cavalo e puxando uma mula carregada com sua bagagem, chegaram ao albergue. Deixaram seus animais aos cuidados de um cavalariço, pediram uma refeição e se engajaram em uma conversa com a mulher do hoteleiro. Vestiam roupas armênias: caftan – deixando aparecer as pontas das calças largas sobre um calçado pontudo –, um cinto onde estava uma garrucha traspassada junto com a tradicional adaga, e um turbante em tecido xadrez cujas pontas, enroladas abaixo dos olhos, ocultavam-lhes os rostos. Pareceu ao Reitor que eram contrabandistas.

Da distância em que se achava, o Reitor não podia ouvir o que falavam, mas pareciam pedir informação sobre um possível hóspede do albergue. Mas o Reitor pôde distinguir o nome “Francisco”, e isto foi o suficiente para ele concluir que eram os matadores. Sabendo que o filho do Barão estaria possivelmente já em Toulouse, vieram no seu encalço.

O Reitor buscou sair sem chamar a atenção do inimigo. Mas eles haveriam de saber no Tribunal a ligação que ele tinha com a vítima que procuravam, e por isso apressou-se em ganhar a estrada com sua charrette.

Nada aconteceu de extraordinário durante a viagem de volta do Reitor, até o momento em que ele se aproximava do hospital. Percebeu que, como esperava, estava sendo seguido. Então, tirando vantagem da distancia em que, por cautela, se mantinham seus perseguidores, deixou para chicotear seu animal já bem próximo da nova ponte. Os dois bandidos fizeram o mesmo com seus cavalos, colocando-os abertamente a galope, a arrastar as desajeitadas mulas. Porém, com o propósito de atalhar, entraram pelo caminho velho. A ponte velha não suportou o peso dos cavalos, dos cavaleiros, das mulas, e das cargas, e mais a trepidação do galope dos animais, e desabou! Os cavaleiros caíram no fosso, com o resto da ponte caindo-lhes em cima. Quando seus corpos foram resgatados Francisco, estupefato, reconheceu os primos sob o disfarce de armênios.

*

Francisco regressou à casa dos pais, mas deixou dito aos frades que transferiria para o hospital a parte da herança que o pai lhe pudesse antecipar e que, depois de breves estudos, voltaria com um atestado de cirurgião.

O Reitor lhe deu cartas de apresentação a pessoas gradas em Paris – uma delas o abade do Hospital Pequeno Santo Antônio, para que lá ele praticasse medicina enquanto estudante –, e cedeu-lhe a charrette, que o cocheiro traria de volta depois de deixá-lo em casa de seus pais, onde se deteria por alguns dias. As irmãs de São José lhe prepararam uma matalotagem com nozes, frutas secas, pão e um barrilete de vinho.

A viagem de volta nada teve em comum com a aflita viagem da vinda. Tranquilo e feliz, Francisco pode gozar as belíssimas paisagens da Provence: vinhedos, plantações de trigo e de maçãs, pastagens e belos regatos. O cocheiro, um antigo postilhão, tinha muitas histórias picantes para contar, do tempo em que percorria em sua charrua aqueles caminhos, entregando a correspondência nas vilas e nos castelos da região.

“Para saber de tantos casos, com certeza lia a correspondência alheia!” – maliciou Francisco em pensamento, esboçando um sorriso.

Como se adivinhasse o juízo que fazia o seu passageiro o ex-postilhão disse:

— Nunca violei um lacre! Mas é espantoso como as pessoas se esquecem de lacrar seus envelopes.

*

Foi Imensa a alegria dos pais com o retorno do filho, e não menor a de Francisco, em revê-los. Porém, teria um motivo para se entristecer… Para seu grande desapontamento, soube que ela estava noiva de outro, daquele que fora o seu rival. E para perturbá-lo ainda mais, também a viajem para Paris não se daria de imediato, como planejara.

Os principais da Vila estavam atônitos com o desaparecimento do Procurador e do Arcipreste, seu irmão.

— Ambos regressavam de Toulouse para cá, e sofreram um acidente do qual, por acaso, fui testemunha – disse o jovem aos conselheiros reunidos por seu pai para tratar da questão.
Um dos conselheiros tomou a palavra e discursou.
— Se o cargo está vago, queremos você como Procurador. Já tem idade para assumir tal responsabilidade e há muito tempo o povo espera ansiosamente por esse acontecimento. Proponho aos colegas conselheiros e ao senhor Barão seu pai que aprovem sua investidura.
Antes que Francisco pudesse argumentar que tinha o compromisso de estudar e retornar ao hospital dos antoninos, os presentes aprovaram sua indicação e aplaudiram.

A vontade da Providência mostrava-se difícil de se entender, pensou Francisco. Agora desejava que ele se tornasse o Procurador da Vila.

Refletindo, concluiu:

“Nenhuma das minhas decisões, que supus fossem desígnios de Deus, na verdade eram Sua vontade!” – contou-as mentalmente – “Cinco certezas e nenhum acerto!” – lamentou. “Sua vontade se desenha ao final. Só aos profetas Deus revelara antecipadamente os seus propósitos”. Parecia-lhe que a Providência queria afastá-lo do seu ardente desejo de servir aos pobres! Uma lágrima rolou em um dos lados de sua face.

— O que será feito do palácio que era ocupado pelo Reverendo Arcipreste? – indagou de chofre um dos conselheiros ao novo Procurador. — Quando for nomeado outro titular, bastará para ele uma residência mais simples, como convém a um sacerdote, em vez de um palácio.

Francisco caminhou a passos lentos, ao redor da mesa à qual estavam sentados os conselheiros, na biblioteca de seu pai. Refletia sobre qual resposta dar para aquela primeira questão que lhe era submetida.

O conselheiro tinha razão – pensou. Por excesso de vaidade – e favorecido pelo falecido Procurador que era seu irmão –, o primo Arcipreste ocupara por muitos anos um palácio, propriedade da Comuna. Despachava na biblioteca os assuntos do cartório eclesiástico do qual era o titular, enquanto reservava para si próprio e sua criada de confiança o restante do prédio. Usava a residência oficial para dar festas e acolher os amigos que vinham hospedar-se com ele na temporada de caça.

Francisco deteve seus passos, para anunciar sua decisão:

— Já de longo tempo a Vila precisa de mais escolas – disse ele. Principalmente as crianças pobres. Elas crescem estúpidas como seus pais e seu futuro não será melhor que a de várias gerações de suas famílias…

— Crianças pobres? – interrompeu-o assustado, o mesmo conselheiro.

— A ala direita será reservada aos filhos das famílias abastadas, atalhou prontamente Francisco, sem perder o tom determinado com que falava.— Elas terão o jardim da frente para brincar. A ala esquerda será para a criançada pobre que, além do ensino, receberá também alimentação na cozinha da escola, e terão o bosque por traz do palácio para seus folguedos.

Por alguns instantes se fez silêncio. Os conselheiros se entreolharam. Francisco buscou o olhar de sua mãe cujos olhos, ao fitá-lo, irradiavam admiração e esperança.

— Eu aprovo – disse de repente o Barão. Os demais conselheiro s seguiram o seu voto.

O Barão levantou-se resoluto de sua cadeira para cumprimentar com entusiasmo o Procurador.

— Uma sábia decisão, meu filho!

Francisco rejubilou-se! Sua mãe veio abraçá-lo com o rosto banhado em lágrimas de alegria!

(*) Atualmente Puy en Velay, na Haute-Loire, França.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 10-07-2013.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Herege de Toulon. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2013.