Hoje: 13-10-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Vendo que os resultados das batalhas eram, desde o início da revolta, cada vez mais favoráveis às tropas do reino, o Vice-Rei mandou suspender várias obras militares que a perspectiva da vitória próxima já lhe mostrava que ficariam ociosas. Entre essas o farol da praia da Lagoinha, que estava ainda sem o telhado da casa do faroleiro e o equipamento da iluminação para orientação dos navios. Não seria mais necessário levar tropas, munição e mantimentos para as praias do nordeste. O General, Marquês de Santa Clara e Sarzedo, que vencera os revoltosos em Abrantes, garantiu a Sua Excelência que estava abastecido o suficiente para liquidar com o levante e riscou o farol do mapa da guerra. O povo de Lagoinha se acostumou a ver aquela torre sem chapéu sobressaindo acima das matas que revestiam o litoral, para além do rio.
Cessado o levante a vida na vila retornou a como sempre fora. Novamente nada parecia perturbar o mar verde, de ondas preguiçosas, sombreado por nuvens cinzentas, quando não absolutamente brancas como algodão; o vento a fazer farfalharem as folhas dos coqueiros e o mar tinha um rugido manso durante o dia, mas rouco e melancólico, às vezes lúbrico, durante a noite e a madrugada.
Mas um dia a tranquilidade pareceu que acabaria novamente. Foram-se embora os modos gentis com que de hábito se tratavam os habitantes e parecia todo mundo excitado, indignado, e formavam-se rodinhas na praça para discutir o assunto do momento: um pescador disse que um estranho estava morando no farol. O invasor havia colocado uma cobertura no que antes era um cômodo a céu aberto, e segundo o pescador, havia capinado o mato ao redor, o que era sinal de que tomava posse do lugar.
O Chefe da Guarda entendeu que ele era a autoridade que devia agir, porque se tratava de propriedade do Reino que estava em risco de sofrer usurpação ou danos. Colocou seu chapéu ornado com uma longa pluma colorida e se fez acompanhar de dois homens da guarda do município sob seu comando. Dirigiu-se a pequena tropa à canoa que balançava à sombra do pimenteiro na margem do rio, as armas foram deixadas com cuidado sob os bancos, e os soldados remaram cortando as ondas que se formavam do confronto da correnteza com a maré que subia.
O grupo desembarcou na outra margem, subiu a barranca ribeirinha e parou a poucos passos da porta, abrigados do sol pelo beiral de palha da construção. O Capitão anunciou ao homem que naquele momento o prendia por invadir a propriedade do reino, nela residindo como se lhe pertencesse. Os dois anspeçadas seguraram suas armas com as duas mãos, à altura da cintura. O invasor fez um sinal de paz e disse: “Sou um homem de bem, Capitão”. Era um homem forte, ombros largos, cabelos pretos com um brilho natural presos por um laço à altura da nuca. Vestia um casaco que ia até pouco abaixo dos joelhos e um colete verde não abotoado, por cima de uma camisa branca… de seda! Queimado de sol, tinha estatura um pouco avantajada. O que ele disse irritou sobremaneira o Capitão: “A divisa dos municípios é por onde corre o rio, e o senhor veio de barco para o lado de cá, onde lhe falta autoridade. Eu já me apresentei ao Capitão que tem jurisdição na área do farol, na vila nova de Piódão que está a poucas milhas daqui mato adentro, à beira do caminho real. Fui bem tratado por ele. Me deu um salvo conduto, mas não tinha como me abrigar e me deixou morando na rua e sem qualquer ajuda. Essa foi a razão de haver retornado à praia, e me instalado no farol. Eu me senti salvo quando uma distinta senhora veio de Piódão, acompanhada de dois homens da Associação Caridosa de São Pedro que ela dirige, oferecer-me algum dinheiro, comestíveis que eu poderia cozinhar, um par de botas sanfonadas de couro, meiões, essa camisa de seda e esse capote-, tudo usado – eu até encontrei uma moeda italiana no bolso do casaco -, mas em muito bom estado.
— Essa camisa de seda também? Perguntou o Capitão admirando-se de que uma sociedade para ajudar mendigos tivesse um artigo tão caro para lhes ofertar. — É sabido que o Alcaide de Piódão e sua mulher têm mergulhadores que recolhem despojos dos navios naufragados ao longo da costa.
— Ainda não lhe falei tudo, Capitão. Meu nome é Ruan Diego Marosa e fui o contramestre do galeão San Pedro e Santiago, que levava carga de prata em parte trocada por ouro no Rio de Janeiro, e que naufragou arrebentando-se contra os rochedos frente à Vila da Lagoinha, na forte tempestade que se formou sobre o mar, faz já um mês, por culpa de não haver faróis nesse litoral, o que é um verdadeiro crime do seu Vice-Rei… – O Capitão e seus esbirros deram pouca atenção ao que o náufrago dizia.
As mãos do invasor foram amarradas sem que ele protestasse, e ele levado para o barco. Após fazer uma rápida vistoria no abrigo, – encontrou apenas o saco de viagem do prisioneiro e um fifó para iluminar o cômodo – o Capitão foi assumir o leme e os seus esbirros remaram de volta a Lagoinha.
Acomodado pacificamente no mesmo banco com o Capitão, o prisioneiro exibiu-lhe seu salvo conduto; — “O senhor haveria de pensar que estava no inferno, se estivesse naquele barco debaixo daquele aguaceiro, sacudido com se não houvesse mais terra firme nem mar, somente ventos a te fazer girar na escuridão e ensurdecedores trovões. Num instante em que um raio derrubou com estrondo enlouquecedor, o mastro da gávea vi uma mulher que abraçava seus três filhos subir com eles abraçados às suas pernas e ela tinha a cabeça vermelha de sangue. Cabos arrebentados açoitavam ferozmente e redemoinhavam enforcando passageiros, e os levava presos quando quebravam e dançavam arrastados por forças gigantescas por cima do tombadilho. Tamanha monstruosidade não teria ocorrido houvesse uma luz que nos avisasse para nos afastarmos do litoral rochoso”.
Sua narrativa o marinheiro repetiu-a para o juiz e os vereadores da vila, quando o Capitão o levou a sala do Conselho, na casa da Câmara. Repetiu-a novamente na casa do Alcaide, sede do governo, onde havia muita gente do povo esperando para vê-lo. A pequena multidão reagiu clamando ao Alcaide que era necessário concluir a construção do farol para acabar com as pequenas e grandes tragédias dos naufrágios noturnos nas ilhas fronteiras à vila e um balizamento no estreito dos arrecifes para evitar encalhe das canoas. Fazia parte dos curiosos um jovem de uns dez anos que se sentou na mureta de pedra perto da escada da Câmara. Lembrou ao espanhol a pintura de um jovem sentado à beira de um lago, impressionado com sua própria beleza refletida pela água. “Narciso, obra de Caravaggio” havia dito o gerente do escritório marítimo espanhol, no Vice-Reino de Nápoles. Lembrou-se, com dolorida saudade, de como a baia de Nápoles era também muito bela. O jovem da mureta de pedra ficou de pé e puxou a manga do seu casaco, quando o espanhol passou por ele. “Quero ser marinheiro. Posso aprender com o senhor?
As autoridades da Vila ouviram a demanda do povo de que fossem solicitados ao Vice-Rei recursos para a conclusão do farol. Um grupo de pessoas de prestígio foi apontado imediatamente pelos cidadãos, todos de opinião que o espanhol também fosse incluído entre os escolhidos para a missão. O espanhol, levado como um troféu, montou na garupa do seu cavalo o jovem que desejava aprender coisas.
Após dois dias de viagem a comitiva chegou à capital e, depois de esperar alguns dias mais para ser recebida, foi ouvida pelo Vice-Rei e seus ministros no majestoso salão de audiências cujas janelas eram ornadas com longas cortinas de brocados dourados. Depois de falar o alcaide sobre o motivo de estarem na presença da autoridade máxima da colônia, e apresentar os cálculos de quanto precisaria para concluir o farol, o Alcaide justificou sua súplica falando dos inúmeros acidentes que a configuração rochosa do litoral provocava todos os anos. E por fim convidou o espanhol a dar os detalhes da tragedia de que tinha sido vítima juntamente com mais sessenta viajantes do Galeão falou da sua desconfiança de que o prefeito de Piódão e sua mulher atuavam no sentido de facilitar que houvesse naufrágios porque, sendo a região de águas rasas, poderiam se apossar dos despojos ocultamente, sem entregá-los ao governador ou pagar uma comissão de imposto, como devido. Por isso eram contra a conclusão da obra e obrigavam o povo a manter a cidade escura para que suas luzes não se fizessem faróis para os navegantes. O Vice-Rei prometeu que resolveria a questão com seus ministros, mas colocava a condição de que o espanhol indicasse onde o galeão afundara. No mesmo instante o naufrago solicitou papel e tinta e escreveu a latitude e longitude aproximada do local.
O Vice-Rei escreveu uma carta demitindo o Alcaide de Piódão que o Capitão deveria entregar pessoalmente ao destinatário. O Alcaide de Lagoinha receberia 500 dobrões em 5 parcelas depois que o povo entrasse com um décimo do dinheiro para a obra; dois soldados e um cabo foram colocados sob as ordens do Capitão, encarregados de trazerem o Alcaide de Piódão algemado. Sua mulher seria também presa e ficaria internada em um convento em Lagoinha ou onde houvesse um convento próximo até que tudo fosse apurado, correndo por conta da presa o pagamento da pensão às freiras.
Retornando a Lagoinha com sua comitiva, o Alcaide pôs-se a trabalhar imediatamente, arregimentando artífices para o telhado e para erguer a escada circular interna, colocar um piso de pedra no cômodo na base do farol. O espanhol foi encarregado de administrar a obra e zelar pelo desempenho, honestidade e dedicação dos homens. Conseguiu que o Capitão colocasse Narciso no rol dos obreiros pagos, ficando ele incumbido da limpeza do local da obra e de prestar pequenos serviços que se tornassem necessários. Nos dias santos semanais ia pescar com o espanhol e tomar lições de navegação nas quais entrava também conhecer o céu e a posição das estrelas para se orientar no mar. Sempre remava sozinho e trazia pescado para as refeições de quem trabalhava no farol e dos curiosos que vinham ver as obras; o visitante mais frequente era o padre que diariamente pela manhã reunia os que estavam na praia para uma missa junto ao farol.
Levado preso o Alcaide, por ordem do Vice-Rei, e sua mulher retida em um convento distante, desapareceram os farejadores de despojos de naufrágios que o casal empregava. O barco que recolhia os salvados ficou abandonado. Ninguém se arvorava em dono com receio de passar por sócio do Alcaide e ser preso. O espanhol entendeu que aquele barco caíra do céu para lhe facilitar viajar para o Rio onde embarcaria em algum navio para a Europa. Precisaria da ajuda de Narciso para fazer o barco navegar. Ignorando a segunda parte do plano de seu mestre, o jovem ficou alvoroçado com a ideia de que os dois teriam seu próprio barco para pescar e ir visitar outras cidades ao longo da costa, coisa que passara a ser seu sonho desde que começara a aprender navegação marítima. Queria ir orientando-se pelas estelas. Mas era preciso esconder o barco e guardar o projeto em segredo ou as autoridades se apossariam do barco. Cortaram uma vara apropriada e com ela impulsionaram o barco e o amarraram entre dois rochedos a coberto da vista da praia. Nadaram de volta e chegaram ao farol em tempo para voltar para Lagoinha no barco do Capitão.
Uma noite de lua cheia em que os rochedos estavam nitidamente visíveis, o espanhol se dispôs a executar a última etapa do seu plano. O farol seria aceso pela primeira vez e muita gente veio para ver a experiência. A inauguração com missa e música ficaria para a noite do domingo próximo e haveria grande risco de o barco ser encontrado por um dos que sabiam nadar e se afastavam muito da praia. O espanhol havia incumbido Narciso de adquirir um rolo de cordas, que era praticamente só o que precisavam e quando todas as atenções estavam postas na grande lanterna com lenha molhada em aguardente que um soldado acenderia com sua pederneira, os dois aventureiros nadaram para o barco, e o impulsionaram levando-o em uma longa curva para o sul até o local em que jazia a caixa que o espanhol reconhecera como sua. Dormiram sob o esteio que haviam construído para se abrigarem das tempestades. Foi maravilhosamente simples quando pela manhã o espanhol mergulhou levando a ponta da corda, e ao cabo de quatro mergulhos puxou a primeira caixa. A segunda caixa era bem menor, porém estava mais pesada. Reunidos os conteúdos das duas, ainda que no Rio tivessem que pagar propina ao Juiz Ouvidor da Alfandega, ao Porteiro, ao Escrivão e ao Almoxarife, além do pesado dízimo da Alfândega, ou seja, um imposto de dez por cento sobre o valor fiscal do que passava por ela, e de e alugar dois escravos para carregar as duas caixas, ainda restaria muito dinheiro para viver e educar Narciso na Espanha. Melhor, porém, se ele conseguisse, com sua experiencia de contramestre, ser pelo menos marinheiro em um navio português. Poderia então levar Narciso empregado como grumete, para os trabalhos mais simples, recebendo apenas um salário simbólico, apesar de saber até navegar orientando-se apenas pelas estrelas no céu. Com esse plano em mente, abriram a vela do barco e deram um sentido adeus ao Farol, que logo perderam de vista.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 17-04-2023.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Farol. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2023.