Hoje: 02-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
O velho pai, percebendo que estava muito mal e lhe restavam poucas horas, pediu à mãe para chamar os filhos, e reuni-los à sua volta. E lhes disse:
– É difícil para mim deixá-los quando mais precisam de um pai experiente e amigo. Hoje lamento a escolha que fiz de passar a maior parte dos anos da minha vida em viagens e aventuras, e de só muito tarde me casar. Mas tenho fé que ainda haverei de protegê-los. Na verdade, não posso saber o que me espera na outra vida mas, apesar disso, quero ouvir de cada um qual o seu maior desejo. Quero ir sabendo como ajudá-los, para o caso que de lá eu possa fazer alguma coisa por vocês. Quanto à sua mãe, dela não preciso ouvir o que deseja porque já sei. Trabalharei para que tenha saúde e cuide de vocês ainda por muitos anos.
Retiraram-se, a mãe e os filhos, para a sala contígua, tristes e perplexos.
– Não vejo como atender um pedido assim. Vão vocês primeiro, vou por último, disse um dos filhos.
– Atendam o que seu pai pede, pode ser que seja sua última vontade, disse a mãe.
– Ele já teve crises piores do que essa, e se recuperou, disse um outro, o mais velho.
– Vou primeiro, disse a menina adolescente. Ele está esperando e isso vai lhe causar stress e fazê-lo piorar. Que ele olhe por mim para que eu faça um bom casamento, não é difícil de pedir.
– Por ordem alfabética, como sempre fazemos, disse o que havia falado primeiro.
O mais velho aprovou, porém disse:
– Vai o Tacão primeiro, enquanto a gente pensa melhor.
A menina protestou imediatamente:
– Se é para seguir a ordem alfabética, desta vez não será de trás para a frente. Você, é que deve ir primeiro, e não o Tacão. – disse ela.
O que atendia por aquele apelido estava sentado de cabeça baixa, silencioso até então. Ia dizer alguma coisa mas a mãe se antecipou:
– Por favor, meninos!
O mais velho abriu a porta do quarto vagarosamente e entrou relutante, mas de rosto grave, e todos sentiram um alívio, vendo que poderiam fazer o mesmo, cada um por sua vez.
*
Poucos meses depois da morte do pai, o mais velho passou em um concurso para um cobiçadíssimo posto no serviço público. Diligente e operoso, cuidava de suas obrigações com satisfação e respeito, e tinha imenso orgulho do cargo que ocupava.
Poucos anos passados a menina, cujo pedido ao pai ela havia dado a conhecer previamente aos irmãos, casou com um diplomata que era todo carinho e atenções, e fez dela a rainha do seu “protocolo” íntimo e particular.
O outro dos irmãos viu realizado seu sonho de ser um excelente médico.
Só a vida do Tacão não mudava. Continuava a sair todas as noites, gostava de festas, avançava devagar nos estudos. Levou essa vida muito singela e despretensiosa, até que um dia os bem sucedidos irmãos decidiram, como bons irmãos, reunir seus recursos para aplicá-los em conjunto e, um tanto irresolutos, mas encorajados pelo cunhado diplomata, perguntaram a Tacão se aceitaria ajudá-los na administração dos negócios. Mesmo não sendo dito, parecia claro que o vigiariam bem de perto, porém com a vantagem de que não precisariam se desviar muito de seus próprios afazeres.
A vida de todos então mudou para um ritmo mais urgente, mais rico. O dinheiro entrou por conta do inesperado tino comercial de Tacão.
*
Uma tarde, os três irmãos bem sucedidos estavam sentados à sombra de uma bela árvore que o pai havia plantado no gramado perto da piscina, tomando um chá preparado pela mãe, e notaram uma lágrima de saudade no seu semblante triste.
De repente se lembraram de que o pai prometera dar saúde à mãe por muitos anos, e ela de fato estava ali, prestimosa com os filhos, sempre bem disposta, e muito raramente se entristecia, como naquele momento. Silenciaram enquanto cada um se lembrava o pedido que havia feito ao pai. Os três se deram conta de que, sem que percebessem o que acontecia, haviam sido atendidos cada um no seu desejo.
– Pensando bem, disse o mais velho, parece que papai de fato nos protegeu, lá de cima, para onde foi… Até o Tacão ele iluminou, para ajudar a gente.
Terminaram o chá em silêncio, observando com afeição o Tacão, que fazia um vigoroso exercício, dando longas e ruidosas braçadas na piscina.
Depois que foram para suas casas, a mãe, retirando a louça, perguntou a Tacão:
– Filho, você não pediu nada a seu pai?… aquela vez que ele chamou cada um de vocês…
– Pedi, disse o filho.
– Então você foi o único que ele não atendeu… você não foi atendido, verdade?…
– Fui o último a ser atendido, apenas isso. Estou satisfeito com meu trabalho e também com os rendimentos que tenho na administração de nossos negócios.
– Mas… isto… quem fez… foram seus irmãos – disse a mãe em dúvida.
– Eu disse a meu pai que meus irmãos não confiavam em mim e isto me magoava muito. O que eu mais queria é que eles passassem a confiar, a me tratar como um igual, a acreditar em mim… A senhora vê? Aconteceu. Eles me confiaram a gestão de todos os seus bens e me tomaram por sócio… – Piscou para a mãe para vê-la sorrir e, sorrindo também, foi dar mais um mergulho na piscina.
Rubem Queiroz Cobra
Este conto está no livro de R. Q. Cobra AS FILHAS ADOTIVAS. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85 905519-1-1. Veja, por favor, a página Livros do Autor.
Página lançada em 08-02-2003
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Queiroz – Os Cinco Desejos. Site www.cobra.pages.nom.br, INTERNET, Brasília, 2002.