Na Bahia de 1600

Hoje: 30-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

O grande e pesado navio de altos mastros e muitas velas, lotado de passageiros, havia deixado Lisboa e tomado primeiro o rumo do arquipélago da Madeira, a Sudoeste de Portugal, de onde depois seguiria para a Bahia. Na equipagem havia muitos escravos forros com suas roupas coloridas e falando estranhos dialetos. Com vento favorável, em poucos dias chegava ao Funchal, capital do arquipélago. Fundada nos anos 1500, tornou-se uma referência importante entre o velho e o novo mundo. A cidade deve muito de sua importância ao açúcar que proporcionou prosperidade à ilha. O lugre não permaneceu ancorado mais que dois dias, para renovar seu estoque de água e embarque de uma família que emigrava para o Brasil, levando seus trastes em dois baús. Muitos dos passageiros desceram em terra para conhecer o porto e a cidade. A navegação magnífica até Funchal dava esperanças de que toda a travessia seria pacífica e havia um sorriso na maioria dos rostos dos passageiros; entre eles havia dois jovens, Pedro e Lucas, alunos da Universidade de Coimbra que seguiam para a Bahia. Não portavam a capa preta que os identificaria como alunos daquele respeitado estabelecimento, mas sua juventude e suas maneiras nobres eram o bastante para que todos os respeitassem e cercassem de simpatia. Ocupavam uma cabina no castelo da proa ao nível do tombadilho. Os dois jovens não desceram para o cais. Ocuparam-se de inspecionar o grande veleiro e ambos subiram à cesta da gávea, com permissão do contramestre, para ver de cima a bela ilha e o mar ao redor. No porão, abaixo do tombadilho, havia uma coberta onde ficavam os canhões e os soldados. Abaixo desta, a coberta para a carga e sob ela o lastro. A cozinha e o salão de refeição ficavam no castelo da popa e o comando do navio, estabelecido no castelo da proa.                        

— As pessoas não enxergam que o mundo tem por base os contrastes – disse Pedro. O mar sacode, mas a terra é firme, uma árvore contrasta consigo própria, a copa folhuda em contraste com uma raiz sem folhas e sem movimento, o homem branco tem o seu contraste no homem preto, o jovem no velho… Lucas riu do  Pedro e disse:

—-Mas, a natureza então por vezes se confunde. Porque pode suceder que a terra trema e até levante lençóis de rocha, como faz o oceano nos terremotos. Lembra-se dos ensinamentos do padre Rafael Bluteau, conforme ensinou nosso professor de geografia?

—-E Deus? Qual o Seu contraste?

—-O pecador, o homem criado à Sua imagem e semelhança, quando peca é o Seu contraste, capaz de odiar e de horrores como os senhores da guerra. Quando você peca, você age ao contrário de Deus. Mal perceberam que escurecia, mas levantando o rosto para o céu Pedro exclamou maravilhado: —-O Cruzeiro do Sul! — e apontou para que Lucas o conhecesse. —-Um manto de estrelas, balbuciou Lucas, e indagou:

 —-Você sabe o nome de todas que estamos vendo?

 —-De muitas, mas não de todas. Ali está Libra e logo adiante a constelação de  Escorpião e mais adiante Sagitário…

Um marujo agitou a escada de corda esticada até o tombadilho e subiu para acender a lanterna que a iluminava.—-Hora de descer, gritou la de baixo, no convés de proa.

Lucas via agora em Pedro o amigo distinto e inteligente que ele pensou encontraria entre seus professores mais novos porem via que Pedro se encaixava naque modelo com a enorme vantagem de terem entre si a masma idade, e se darem muito bem.

No dia seguinte o galeão levantou âncora. Os passageiros acenavam adeus para os que estavam no cais assistindo a partida. O barco comboiado começou a navegar em um largo círculo para achar a posição em que flutuaria com sua proa na direção do Sudoeste, a caminho do Brasil. O galeao que o escoltaria, com a burrajona asteada, seguiu manobra semelhante. 

No trajeto no oceano as duas naus enfrentaram contratempos esperados: as costumeiras calmarias não faltaram. Do galeão foram baixadas duas curaleiras equipadas com remadores negros, usando chapéus, perúcas de setim, gorros e barretes vermelhos, que puxaram, usando cordas, o pesado veleiro no primeiro e no segundo dia, quando então o vento voltou a soprar. Mas por quase todos os dias o vento era fraco ou, para desespero dos passageiros, ausente.

Em Salvador as autoridades da marinha e do controle da alfandega receberam um aviso do capitão de um bergantim inglês muito leve e veloz, que havia deixado o galeão e a nau  escoltada para trás, mas que ambos deviam estar muito próximos de serem avistados.

Barco escoltado por um galeão (de https://images.app.goo.gl/TzAxCgjNQHKtckyE9)

Em Salvador. o galeão era esperado na praia havia algumas semanas. Alem das calmarias, ventos contrários haviam soprado no último trecho da rota atrasando sua navegação. As pessoas na vila, os olhos em permanente vigília sobre o mar, se encheram de alegria quando velas brancas se mostraram enfunadas no horizonte, na tarde daquele dia de sol esplendoroso, a crescerem com rapidez em direção à terra. Pode-se dizer que ao menos a metade da população da cidade afluiu à praia. Começaram as cantorias e as danças de boas-vindas. Nativos seminus, funcionários do governo, vendedores de frutas que queriam ser os primeiros a subir no grande navio para oferecer seus serviços aos que desembarcariam na Bahia, encheram a praia do desembarque. Desde alguma distância já se podia ver que seriam muitos a desembarcar: gente de toda espécie, que vinha de Portugal para o Brasil, aglomerada no convés da proa, de onde acenavam aos que aguardavam em terra. Eram principalmente funcionários da coroa, religiosos, alguns comerciantes ricos, quase todos acompanhados das esposas e de crianças. Após dois meses de embarcados em Lisboa, era notório o alívio e o prazer em pousar os olhos na mata de um verde denso que avançava exuberante até encontrar, com uma ramagem rasteira, a areia a pouca distância do mar. Menos demonstrativos de alegria estavam os que seguiriam viagem para o Rio de Janeiro navegando no mar de Abrolhos, cheio de arrecifes traiçoeiros de coral, que já haviam causado a perda de muitos navios.

Dois negrinhos forros chegaram-se para junto de Pedro e Lucas que observavam a festa na praia, apoiados ao tombadilho do convés, e se ofereceram para ajudá-los a desembarcar.

—-O nome de vocês?

—-Ele é Pedro e eu sou Lucas, disse um dos jovens. —-E vocês?

—-Massuba e Matundé. Massuba perdeu uma orelha, Um macaco que pôs no ombro comeu uma orelha dele. A gente carrega os sacos e os baús de vocês.

Os dois negros não perderam a agilidade colocando-a nas costas a pesada bagagem.

Graças a presteza dos dois jovens negros, os dois viajantes logo conseguiram lugar na chalupa que levava os passageiros junto com barris de vinho para a terra firme. Na praia, em meio a grande quantidade de curiosos, os dois nativos se desvencilhavam dos vendedores de frutas e dos que ofereciam pousada e chamaram um carreiro que oferecia transportar bagagem; ajudaram-nos a se acomodarem sobre seus próprios sacos de viagem. Havia muitos barris já desembarcados e grande número de frades e comerciantes conferindo suas encomendas que lhes eram entreges pelo contramestre mediante recibo. O homem do correio de terra amarrou seu caracle em um poste de atracação, ficou a espera de que o contamestre pudesse recebê-las e lhe dar o registro dos exportadores.

Os dois passageiros desejavam ir ao Palácio do bispo. Era um endereço que infundia respeito. Na carroça cessou a conversa que não viesse dos dois ilustres passageiros, Pedro e Lucas. O carreiro informava sobre o caminho, e as igrejas frente às quais passavam, que eram muitas. O ruido dos aros de ferro das rodas sobre as calçadas atraia a atenção dos transeuntes. Havia muita gente nas ruas. Muitos ainda se encaminhavam para a praia vestidos com suas melhores roupas, para ver o galeão, ouvir novidades da metrópole, e conhecer os passageiros que chegavam.

Frente ao Palácio o carreiro mandou um dos alforriados tocar o sino, que podia ser tocado por uma corda fina que saia por um buraco na porta da frente. Imediatamente um escravo abriu uma janelinha e adivinhando que era o rapaz que o bispo esperava havia semanas, pediu que este aguardasse enquanto ele ia chamar o seu senhor.

Tio e sobrinho abraçaram-se demorada e ruidosamente. O sobrinho apresentou seu companheiro de viagem, enquanto os dois alforriados carregavam os sacos da bagagem para o quarto indicado. Depois dos abraços, o tio quis saber sobre cada um dos seus parentes. Recebeu um maço de cartas de praticamente cada um dos parentes e de amigos, com os quais trocava correspondência praticamente uma vez por ano, quando a frota ia do Rio de Janeiro para Lisboa e tocava Salvador. Pedro trouxera-lhe de presente uma edição nova, encadernada em couro, do “Inferno de Dante”.

A conversa não pode durar muito porque o Bispo precisava ir dormir cedo, logo após o jantar. Levantava-se ainda de madrugada. Pedro e Lucas porém, preferiram aceitar a proposta de Massuba de saírem para ver a cidade à noite. O tio se opôs, mas terminou aceitando que o sobrinho e seu amigo fossem naquela aventura, depois de lhes prometer que rezaria muito por ambos, e recomendar seu escravo Honório que os aguardasse retornar e lhes servisse um caldo quente quando voltassem. 

Havia muita gente na porta do bordel de Dona Anninka, uma cafetina polonesa que viera para o Brasil trazendo 20 mulheres, prostitutas polonesas. Homens faziam uma fila para o lado que a rua era mais baixa. Ao mesmo tempo que aguardavam a vez de entrar, também bebiam aguardente de copos e moringas de barro. O bordel tinha um piso superior com uma varanda onde se podia ver mesinhas, todas ocupadas. Entre as mesas, atendendo os fregueses, havia bem uma dúzia de escravos vestindo calções brancos que iam até pouco abaixo dos joelhos, peitos nus, cabelos tipo carapinha; permaneciam mudos enquanto serviam, deixando toda a desordem e barulheira para os fregueses enlouquecidos pela bebida e apaixonados pelas mulheres, passivas ante aquela desesperada fome de sexo.

—-Vamos embora, propôs Lucas. —-Já vimos o bastante. Esse lugar é perigoso! Sabemos que em Portugal também tem comércio sexual como este…

—-Tem sim, disse Pedro. —-No Bairro Alto, perto da Igreja de São Roque dos Jesuítas, tem algumas casas de prostituição frequentadas por todo o tipo de gente, dos artífices aos pescadores, e inclusive gente nobre de Lisboa.

Lucas tomou um último gole da mistura que o garçom lhe trouxera e se pôs de pé.

 —-O que? Querem ir embora sem provarem nosso vinho? —-Ah, isto não permito! – disse uma mulher, certamente a dona daquele sórdido estabelecimento. Vestia um longo de seda, era acompanhada por um negro muito persuasivo chamado Sansão, que balançou a cabeça indicando concordar com sua dona que os fregueses deviam ficar. Sansão expulsou um casal para liberar uma mesa e pôs outro casal sentado no chão para conseguir mais duas cadeiras. Outro escravo trouxe uma moringa de vinho como as que havia nas outras mesas e Lucas provou o sabor da bebida.

—-“Divino”, comentou ele, e serviu-se mais uma vez. O mesmo escravo trouxe-lhe uma panelinha de pedra com carne de anta frita e gordurosa, encorajando-o a provar. O jovem também achou que o prato era divino. Então ouviu-se um disparo de garrucha que ressoou por toda a casa, e um corpo pesado de um homem pálido e adiposo rolou pela escada da varanda derrubando a gente que estava observando o salão visto dos degraus da escada. Foi pânico imediato. O assassino se desfez de uma pistola jogando-a ao lado do corpo do assassinado. Escapou pulando da menor altura da varanda na ponta sobre o lado mais alto da rua inclinada. Os fregueses nervosos e aos gritos tentavam sair do salão. Lucas lembrou do pesadelo que tivera na noite anterior, que era o galeão a afundar com todos os passageiros gritando por socorro durante uma tempestade ainda em alto mar.

Sansão estava com seu corpanzil obstruindo a fuga para a rua, fazendo todos pagarem uma taxa de desastre que a dona Anninka havia criado para emergências como aquela, para que ninguém saísse sem pagar pelo que quer que houvesse consumido. Mas apesar de sua força hercúlea, foi derrubado pela massa dos fregueses apavorados com o tiro. 

O dia seguinte foi marcado por uma rotina um pouco diferente. Massuba e Matundé acordaram e começaram a limpar o pátio, mas não sabiam se seriam contratados pelo bispo, e receavam que as chances disto acontecer estariam menores, depois do incidente na casa de mulheres de Dona Anninka. O escravo Honorio perdeu toda simpatia por eles dois e não permitiria que ficassem, pensaram. Também os dois rapazes receavam pela reação do bispo. Mas todos foram salvos pelos representantes da Confraria dos Escravistas, que haviam sido convidados pelo prelado a tomar café em sua companhia aquela manhã. Haveriam de passar a manhã estudando e discutindo as licenças que a Confraria necessitava para os festejos do dia de Santo Antônio, seu padroeiro, que os mesários da Irmandade organizavam todos os anos no dia 13 de junho. A igreja era decorada com fitas bandeiras e a imagem do Santo colocada em um pedestal de flores. Missas solenes, bençãos do Santíssimo, Tedéus, Ladainhas aconteciam  durante os 2 ou 3 dias da festa do Santo e havia muita comida e danças típicas como as quadrilhas. Também há produção de inúmeras comidas à base de milho e amendoim, como canjica, pamonha, pé de moleque, além de bebidas como o quentão de vinho, pinhão, bolos enfeitados, cucas, pipoca, cocada, churrasco, galinha caipira assada, com a benção do Santo e do pãozinho de Santo Antônio, saladas, entre outros alimentos, (a maioria das coisas eram sempre doadas pelos moradores da comunidade recolhidos pelos organizadores da festa). Também havia barracas para bingo, pescaria, brinquedos, avezinha da sorte, dança, rifas e sorteio de objetos doados pela comunidade entre outras diversões e principalmente muita alegria e conversa entre amigos e parentes que esperavam a festa para se reverem. Para a maioria dos residentes era única oportunidade de comprarem roupas novas, especialmente para o dia da festa, pescarias de brinquedos, bingos e sorteios de brindes, e principalmente muita comida típica das festas juninas, como: quentão, maçã-do-amor, cocada, pipocas, bolos enfeitados, pastéis, refrigerantes, galinhas assadas, pãezinhos e salada, costela e muita alegria com músicas, bailes e especialmente a queima da fogueira na noite de Santo Antônio, e alegram os corações dos casais apaixonados de Salvador.

Finalmente encontraram-se ao almoço o Bispo e seu sobrinho.

—-Quero que você medite sobre o que vou dizer no sermão que me encomendaram para o dia de Santo Antônio, disse o Bispo ao sobrinho Pedro. Escolhi esse tema depois que o preto Honório falou que você e seu amigo Lucas visitaram o bordel da polaca Anninka e assistiram o que aconteceu lá. Santo Antônio salvou vocês.

—-Não houve nada que temer; o crime foi no andar de cima e estávamos em uma mesa no térreo. Não fizemos nada condenável. Só queríamos ver como é um bordel. Meus amigos falam sempre…  

—-Escute! —- interrompeu o Bispo. —- Santo Antônio é tido por amigo dos casais e faz milagres em perfeito acordo com o desejo de Deus de proporcionar ao homem e à mulher o prazer da união sexual – disse o prelado. —- Mas, ao mesmo tempo, Ele colocou na cabeça de ambos uma consciência de que esse prazer era diferente e especial, e quase inresistível, mas deveria obedecer à razão. Obtido em uma relação racional, não poderia ser causa de qualquer prejuízo a nenhum dos dois, nem à sociedade, nem aviltante de um ou do outro parceiro.

Nessas condições, que estão garantidas no sacramento do matrimônio, não haveria nenhum mal na relação sexual. E era somente isso que deveria ser observado pelo casal, e os milagres de Santo Antônio são as uniões de casais esclarecidos, sem temor de confessar a Deus seus propósitos puros. Então, é muito simples: casais que vivam a atração do sexo corretamente, não pecarão por dormirem juntos. Por isso peço a você e ao Lucas, seu amigo, para não frequentarem casas como a da dona Anninka, nem se exporem de nenhum outro modo a desrespeitar a Lei de Deus.

Passadas as festanças de Santo Antônio os dois rapazes quiseram conhecer as ilhas da baia. Mas ja ansiavam pelo retorno do galeão que, fazendo o trajeto de volta, os levaria para Lsboa. Finalmente chegou o dia do retorno à pátria. 

Os aprestos para a viagem foram rápidos. O barco, com muitos passageiros embarcados no Rio de Janeiro, não pode evitar de reforçar a cozinha de carnes salgadas, farinha, legumes mais resistentes à deteoração e vários barris de água.

O contramestre deu um longo apito e as velas do barco foram desfraldadas, faltando somente puxar as bolinas e trazê-las para a direção do vento. Pedro despediu-se do bispo com um abraço cheio de gratidão, e o mesmo fez Lucas. A um sinal do capitão as velas foram amarradas na melhor posição e o barco colocou-se vagarosamente na posição correta para a longa viagem para Lisboa, sob a proteção de Deus e de todos os Santos. Do tombadilho os rapazes viram que o Bispo lançava, da praia, uma benção ao barco, e tinha, na mão esquerda o seu belo cetro dourado.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 04-03-2024.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Na Bahia de 1600. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2024.