O Padeiro da Noite

Hoje: 26-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

O trabalho na padaria começava de madrugada. O ajudante do padeiro dormia debaixo do balcão e já estava de pé bem cedo, para produzir a primeira fornada de pães e atender os fregueses que também madrugavam para irem trabalhar. A garçonete Maria Rosa fatiava a mortadela e separava os pães para os sanduiches. Deixava tudo pronto na extremidade do balcão, junto à cafeteira de aço com coador de pano, e o secador de pires e xícaras. As 6 horas as portas eram levantadas e iniciado o atendimento. Os primeiros transeuntes que passavam sofrendo com o frio, apertavam suas vestes contra o corpo e olhavam aparentando descaso e preconceito o grupo de pessoas pobremente vestidas à entrada da padaria.

Quando o movimento declinava, ao fim da tarde, o padeiro punha sobre o tampo de mármore do balcão o cesto de vime comprido e largo que o jovem balconista, carinhosamente apelidado Grilo, um rapaz magro e esperto, encheria de uma variedade de pães para vender à noite na rua, depois da padaria fechar. Pães de sal e doce, sovado, careca e brioches, e por cima alguns pacotes fechados de biscoito…

Naquele anoitecer Grilo iniciou seu trabalho com o pensamento em uma jovem freguesa a quem pôs o apelido “Doçura”. A mãe dela havia falecido havia pouco tempo, e fora uma freguesa constante por muito tempo. Sua casa estava perto do fim do trajeto que percorria com sua cesta de pães. Foi avançando sem pressa, chamando os fregueses com seu grito “Olha o padeiro da noite”, e o peso da cesta de pães aos poucos se reduzia. No momento em que atendia uma freguesa, chamou sua atenção um homem já maduro, muito excitado, a segurar a mão direita de uma mulher com sua mão direita, e a enlaçá-la pela cintura com a esquerda. Cochichava-lhe palavras ao ouvido, e com essa mão também alisava carinhosamente seus cabelos ondulados enquanto andavam com certa pressa. Ela vestia um modesto vestido de chita branco, já um tanto encardido, com fitinhas vermelhas correndo ao longo do decote, as pontas unidas por um laço sobre o peito. Ele vestia um terno azul já um pouco amarrotado, bastante folgado, e gravata preta; este era um uniforme que usavam os funcionários públicos do Estado. Já havia perdido muitos cabelos. Foi uma mirada rápida, e Grilo voltou sua atenção para outra freguesa que lhe sinalizara de seu portão.

Frente à casa de Doçura encheu o peito para gritar “Olha o padeiro da noite!”; ela abriu a porta e sem esconder sua alegria, chegou ao portão para pegar o pão e conversar com o padeiro. Esta foi uma cena que se repetiu todas as noites, menos naquela em que ela não atendeu ao reclame, mesmo repetido, e a vizinha assomou ao muro para avisar que ela saíra à tarde, e se oferecer para lhe entregar o pão, quando voltasse. O padeiro da noite retornou à padaria, andando pelas ruas escuras com sua cesta, taciturno e preocupado, e não conseguiu dormir bem. Sua inquietação durou todo o dia seguinte, ansioso pela hora da saída para sua venda noturna, mas tudo parecia conspirar para atrasá-lo. O patrão preparou a cesta de pães com atraso, e na rua os fregueses demoravam na escolha dos pães. Quando chegou à casa da amiga, – de quem já se considerava namorado-, ela o aguardava impaciente. Conversaram, como de hábito, no portão. Então ele recebeu a notícia triste de que, no dia anterior, pouco antes da sua passagem, uma mulher viera chamá-la porque seu pai havia falecido subitamente no quarto dela. Doçura correu ao hospital, que era bem próximo, e lá as freiras chamaram o carro fúnebre da municipalidade para remover o corpo e levá-lo para sepultamento numa das gavetas de indigentes do cemitério. Aquela noite, a conselho das freiras, dormiu no hospital. Estava desolada, incrédula, e deprimida pela súbita morte e pela chocante aventura do pai. No dia seguinte, após o café, a superiora mandou que fosse levada para casa na ambulância do hospital.

Depois de ouvir o relato, Grilo, consternado, não quis que ela dormisse só na casa. Insistiu em entrar, ficar, e dormir no sofá de vime da sala e só pela manhã retornou à padaria.

Na noite seguinte doçura tinha mais uma surpresa para ele. Disse-lhe que o chefe de seu pai mandara seu chofer saber por que ele havia dois dias que não comparecia ao serviço. Ela contou o acontecido ao chofer e este mostrou-se muito condoído e perguntou como ela pensava sobreviver ao desastre. Ela disse que iria procurar um emprego. O chofer perguntou se ela sabia do prêmio que os funcionários haviam recebido de um estrangeiro rico que lhe facilitaram as coisas no andamento de seu pedido de compra de umas terras. Na ocasião seu Jeremias dissera a ele que a parte que lhe coubera ele havia guardado na Caixa Econômica e que usaria os juros para complementar o magro salário que recebia do Estado. Ela lhe disse que nunca o pai lhe falara de tal coisa, nem sua mãe quando era viva, e que esta também certamente ignorava aquela história… O homem aconselhou-a a se informar na Caixa Econômica.

Aquela noite, Grilo perguntou:

— Você sabe onde está a caderneta da Caixa que seu pai certamente tinha? Nela são anotadas as movimentações do cliente.

— Vamos procurar? — propôs ela. Levou o namorado ao quarto do falecido e, remexendo nas gavetas, encontraram não apenas a caderneta como toda a documentação do pai e da mãe que falecera recentemente.

— Vou levar você à Caixa. Vamos explicar tudo ao gerente e pedir para transferir a conta para você, que é a única herdeira dele. Vamos levar a caderneta e os documentos que encontramos. Para Grilo, o início da tarde era o melhor momento para se ausentar do serviço; melhor momento também para o atendimento na Caixa.

No domingo, muito felizes com a solução dada pelo gerente, que inclusive descontou um primeiro cheque para Doçura, foram passar a manhã no parque municipal. Tão habituados estavam a ambientes fechados, e Grilo ao trabalho de madrugada e à noite, que as árvores, as palmeiras, a grama e o céu pareciam banhados em uma claridade que lhes ofuscava os olhos. Sentaram-se sob uma árvore bem próxima da lagoa, respirando, com prazer, aqueles perfumes de várias flores, ouvindo o canto dos pássaros, observando o movimento das pessoas, sempre sorridentes ou engajadas em conversas animadas. Do outro lado da lagoa havia uma festa ruidosa, com muitas crianças, bandeirinhas coloridas suspensas, balões azuis e vermelhos amarrados em varas fincadas no chão. Era distante, mas podiam ouvir músicas infantis, cujo som viajava com altura e clareza sobre as águas. Havia lá também barcos e pedalinhos dos quais pessoas observavam o movimento das crianças. 

 O casal sentado na grama ela frente a ele, as pernas dobradas para que os dois pudessem estar mais próximos um do outro, tinham as mãos entrelaçadas enquanto conversavam sorrindo, o que para Grilo era prova de que Doçura conseguira afastar todos os pensamentos tristes, e recuperava seu espírito feliz e sua alegria sempre contagiante. Avançava o torso e as mãos para acariciar seus cabelos e seu rosto e preferia não dizer nada, apenas acariciá-la. Então ela surpreendeu-o perguntando: “Você casaria comigo?”. Ele apertou suas mãos e respondeu: “Hoje mesmo, se você quiser”. Adiantou ainda mais o rosto e beijou-a breve e castamente.

Caminhando pela Avenida chegaram a uma lanchonete onde almoçaram silenciosamente, como se esmagados pela grandeza do sonho que tinham. Eram ambos órfãos. Ela apenas dois anos mais nova – o que ele sabia por ter visto seus documentos no banco – e o pai lhe deixara uma boa casa que, com o casamento passaria a pertencer a ambos.

No ônibus ela lhe disse: “Você dormirá lá em casa, porém, por enquanto, em seu próprio quarto.” À noite, quando se recolheram, ela lhe disse que no dia seguinte iria à igreja levando os documentos de ambos. Ambos ardiam de vontade que o padre celebrasse as bodas de imediato.

Na segunda feira, bem cedo Grilo chegou à padaria e começou pontualmente a fabricação dos pães. No meio da manhã o movimento já havia diminuído e Grilo pode ir à procura do amigo Waldir, que morava muito perto da padaria. Jogavam no mesmo time formado pelos adolescentes e jovens do bairro, em um campo de terra por trás da garagem dos ônibus. O amigo engraxava e lustrava um par de sapatos pretos sentado na escada do alpendre de sua casa. Precisava ser rápido para que sua ausência não fosse notada no balcão da padaria.

Waldir vim pedir a você um grande favor.

 “O que aconteceu? Domingo você não foi jogar… chamamos o Vitórinho, o filho do sr. Vitório, dono da padaria, para substituí-lo…”

— Quero que você seja meu padrinho de casamento – interrompeu Grilo.

Waldir, com bom humor, estranhou: “Está doido, é?”

— Agora não dá para explicar, mas é verdade. Devo me casar por esses dias com uma menina que conheci na venda da noite. É uma garota bonita, inteligente, e gosta de mim, não tenho dúvida.

O amigo interrompeu o vai e vem da escova sobre o couro do sapato que tinha na mão esquerda, e se pôs de pé no degrau de cimento vermelho da escada.

— É como todo namorado vê sua namorada, disse com ironia. Por que me escolheu?

— Você foi seminarista, entende de igreja, queria você do meu lado me falando o que fazer diante do padre. Ainda lhe avisarei o dia e a hora do casamento. Você poderá subir até a igreja e encontrar a gente lá. Olha, amigo, não diga que não. Preciso muito que me faça este favor, em nome de nossa amizade. Você promete?

— Prometo, não há dificuldade. Você já me fez alguns favores bem grandes. Mas não precisa dizer a ela que fui seminarista, poderá influir de um modo que eu detesto se, no futuro, nos tornarmos amigos. Eu irei sim.

— Jura?

— Juro que sim, disse Waldir voltando a lustrar seu par de sapatos no degrau da escada.

Aceitos os documentos o casamento foi realizado com a presença apenas dos noivos e da testemunha. Ela comprara na véspera um vestido de noiva e chamara um fotografo para retratar a cerimônia. Mas não havia tempo de mandar fazer um terno para Grilo, que então vestiu um terno tomado emprestado a Waldir.

Daquela data em diante o bairro não ouviria mais o grito “Olha o padeiro da noite”. Pouco tempo depois o Sr. Júlio Cerqueira e a Sra. Márcia Alves Cerqueira eram donos de uma padaria em um bairro onde prosperaram atraindo crianças que arrastavam os pais a se tornarem fregueses, pois nunca se esqueceram daquele momento de felicidade quando viram crianças felizes na outra margem do lago, no dia que consideravam que havia sido até então, o mais feliz de suas vidas.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 04-10-2022.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Padeiro da Noite. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2022.